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O chibo

Estávamos em 1958, eu tinha nove anos, acabara a 4ª classe do ensino primário e fui passar uma semana de férias na fazenda do senhor Altino. Tudo se passava no Norte de Angola.
A fazenda do senhor Altino, dir-se-ia hoje, era uma fazenda verdadeiramente ecológica. As galinhas punham os ovos onde bem lhes apetecia. Ninguém se dava ao trabalho de recolher diariamente os ovos. Por instinto ou teimosia as galinhas punham os ovos sempre no mesmo lugar. Quando ficavam chocas acaçapavam-se no lugar da postura e aí tentavam fabricar pintos. De cada 20 nasciam cinco. Mas nasciam. As bananeiras cresciam por si mesmas. O mesmo se podendo dizer das papaias. Cortados os cachos e os frutos o resto crescia espontaneamente. O senhor Altino tinha ido para África em 1942. Tinha tomado muito quinino e, mais tarde, camoquina. Diziam que estava apanhado. Só o recordo como um branco, sempre de tronco nu, com muitas mulheres negras e mulatas, uma garrafa de Cuca na mão, uma vez ou outra de Nocal, mas sempre repousando na rede ou na sua cadeira de baloiço. Naquela semana, o senhor Altino deu-me, indolentemente, inúmeros conselhos. De acordo com os seus critérios, a coisa melhor do mundo eram as mulheres. Não as brancas, que em vez de fazer amor só traziam confusões. Mas as negras e as mulatas, essas sim, sabiam o que era o amor. No final do meu estágio de uma semana, o senhor Altino deu-me uma mulher, cinco galinhas e um galo, um porco e uma porca, um chibo e duas cabras. Segundo o critério do senhor Altino, tinha-me sido dado “tudo o que um homem precisa para triunfar na vida”.
Visto à distância, tenho de confessar que a mulata se esforçou para me iniciar na vida que me escapou por mais alguns anos. As galinhas e o galo multiplicaram-se por alguns anos, sendo caso de sucesso natural. Os porcos desenvolveram-se até lhes dar a peste africana; foram um insucesso. As cabras multiplicaram-se até que os leões deram com elas e lhes puseram fim. Amizade verdadeira, companheirismo, só os tive com o meu chibo.
Esta amizade com o chibo resultou do infortúnio. O chibo, que baptizei com o nome de Anacleto, cumpriu a sua função de cobridor de cabras durante algum tempo. Era um chibo brincalhão. Quando me aproximava dele, guardava distância antes de arrancar para a marrada. Corria de longe para vir marrar nas minhas botas cardadas de então. Menino e chibo funcionavam no mesmo registo. Um encanto de comunicação. No fim de alguns meses, o chibo seguia-me por todo o lado como se fosse um cão, salvaguardadas as diferenças de altivez que existem entre chibos e cães.
Um dia, a tragédia deu-se: seguia-me o chibo calmamente, quando passámos próximos do Lobo de Alsácia do camionista Saraiva – um cão tão assassino que o descampado do mato obrigava a que estivesse amarrado; descuidado, o meu chibo passou no circulo de jurisdição do cão assassino – um salto do cão e o meu chibo ficou sem a perna dianteira do lado direito... Uma aflição. A mesma aflição conduziu chibo e dono ao posto de socorros do lugar. O enfermeiro Monteiro ditou a sentença: “é precisa uma amputação radical”. E assim ficou o meu chibo amputado da perna direita da parte dianteiro.
Foram tempos de aflição, revolta e desprazer. O meu chibo era lindo, inteligente e vigoroso. Marrava a direito contra as minhas botas como se fosse uma força da natureza. Um gesto em falso, o abocanhar dum cão manhoso e mau, e ali estava agora o chibo deficiente, manco do lado direito dianteiro. Uma sombra do que fora. As minhas boas relações com o senhor Evaristo, mestre de carpintaria, oriundo de uma família de marceneiros e carpinteiros de Viana do Castelo, grande tocador de viola, vinham de longe. Éramos amigos há dois anos. Pesem as diferenças de idade – o velho Evaristo já tinha quase 70 anos e eu tinha 11 – unia-nos o prazer de cheirar, acariciar e olhar a madeira. No tempo em que eu tinha o prazer de ter um chibo, tinha outro prazer: frequentar diariamente a carpintaria do velho Evaristo. O meu velho amigo era severo e disciplinado. Permitia-me que tudo experimentasse, que em tudo pudesse mexer, mas obrigava-me a regras. Nenhum martelo, plaina ou metro podia ficar abandonado sobre a banca. Tudo tinha de ser meti culosamente colocado sobre o desenho que se fixava nas paredes do barraco que servia de local de oficina. A pobreza não impedia a honradez profissional.
Os amigos são assim mesmo. Perante o drama da perda, nenhum pode ficar indiferente. É preciso fazer qualquer coisa. Num domingo, perante o meu desgosto relacionado com a deficiência do chibo, o velho Evaristo e eu pensámos e repensámos soluções. E decidimos em comum: podemos construir uma perna de pau que diminua a deficiência e a vergonha do animal.
O chibo Anacleto foi levado ao local de trabalho. A pata esquerda foi desenhada meticulosamente. Considerou-se que a direita devia ser igual à da esquerda. Pensámos que a elasticidade de uma câmara de ar de pneu podia servir de encaixe e ligação à parte posterior do animal. No fim do dia, tínhamos uma bela peça de marcenaria. O chibo tinha uma prótese artesanal de valor artístico. O pior foi o encaixe. Apesar da beleza da peça artística e do esforço do velho Evaristo, o meu chibo nunca se adaptou à pata artificial. Ficou sempre um chibo manco e triste.
Entre mim e o velho marceneiro reforçou-se e perdurou a amizade dos que tentam fazer em comum alguma coisa para os outros. Mesmo que o outro seja um chibo.

José Paulo Serralheiro (24.05.1996)


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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