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Os dispensáveis

Aquele ano começou mal na escola. Foi um arranque com várias complicações. Professores colocados com atraso, professores mal colocados, professores que adoeceram gravemente e saíram, dificuldades com a gestão do espaço, e outros pequenos problemas que o quotidiano de uma escola sempre tem.

Mas tudo se complicou ainda mais quando o professor L. foi colocado. Os directores das turmas a que ele dava aulas, vieram várias vezes procurar-me. Os pais dos alunos já tinham vindo ter comigo para falar do problema. Os alunos também se referiam à situação, uns rindo-se outros apresentando um ar grave.

L. era professor de História. Tinha visíveis dificuldades de visão, usava uns espessos óculos, gaguejava um pouco e tremia. Não dispunha dos melhores instrumentos para enfrentar uma turma de jovens adolescentes, cheios de energia e para quem o mundo estava fora da sala. A História podia ser uma disciplina fascinante se eles o ouvissem. Mas eles não escutavam, a aula decorria e tudo podia acontecer. L. parecia não se dar conta de nada disso.

Lá fora, através da janela, podíamos observar o professor percorrendo a sala vagarosamente, entre as filas das mesas, o livro colado aos olhos, sem ver os alunos, como se tivesse esquecido mesmo que eles existiam, lendo o manual em ritmo certo e voz forte, enquanto pequenos aviões de papel cortavam o ar, pequenos projécteis eram arremessados, alunos falavam ao telemóvel, alguns mais expeditos saíam e entravam pela janela, outros corriam até ao quadro e, de giz na mão, construíam momentos de diversão mais brejeiros ou menos, mas que faziam rir toda a turma. E o professor continuava, tranquilo, lendo o seu manual, imperturbável até tocar, com o livro junto ao rosto, bem perto dos olhos.

As queixas sucediam-se. Falámos com ele, mas era difícil alterar a sua forma de trabalhar: ele via mal, ou quase não via, nem ao longe nem perto. Falámos com os alunos. Eram simpáticos, até compreendiam a situação, até gostavam do professor, mas era pedir-lhes demais: as condições objectivas apelavam de tal forma a um comportamento de brincadeira que era impossível esperar outro tipo de colaboração.

Um dia, o professor, que tinha pedido uma junta médica, foi dispensado da componente lectiva e, a meio do ano, sem podermos pensar muito, encontrámos trabalho para ele na biblioteca. Que era bem equipada e bastante procurada pelos alunos. Foi então que a colega responsável pela biblioteca nos falou. Estava espantada: um após outro, esperando às vezes, os alunos recorriam cada vez mais ao professor L. Este, óptimo pesquisador, com uma ampla cultura geral, conhecedor de várias áreas, minucioso, rigoroso, perspicaz, paciente e sempre afável, rapidamente se tornou um recurso incontornável para os alunos. Recorriam a ele cada vez mais, para pequenos e grandes trabalhos, para fazer pesquisa orientada, para saber redigir um relatório, para citar as fontes, para aprender a fazer referências, para utilizar a biblioteca no máximo que ela podia oferecer, e mesmo para aprender a fazer procura fora da escola e saber seleccionar a informação.

Também outros professores passaram a procurá-lo pedindo ajuda para uma pesquisa precisa, para uma sugestão de uma fonte, para esclarecimento de uma questão pouco clara. Foi quando se percebeu como era importante o serviço prestado pelo professor L. que, para o ano que ia começar, se criou e se institucionalizou esse tipo de resposta. Agora na biblioteca, apoiado por outros professores, L. era procurado por alunos e professores, entreabria as portas da investigação, oferecia os instrumentos para uma procura motivada e dirigida, criava condições para o desenvolvimento de aprendizagens autónomas e sustentadas.

Um dia, o vento dos concursos levou-o. Não sabemos como estará na nova escola, se é que se percebeu que há lugar para ele e necessidade daquilo que ele sabe fazer. Mas a nossa escola ganhou um saber e um serviço que agora não pode dispensar.

Angelina Carvalho

Centro de Investigação e Intervenção Educativas (FPCEUP)


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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