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O cinema da infância

Entendemos a infância como um artefato social e histórico e não uma simples entidade biológica. Dessa forma, o tipo de infância com que ainda operamos foi construído pela sociedade ocidental moderna há 150 anos. A partir de tal viés histórico, advém uma outra proposição segundo a qual o apogeu dessa representação sobre a infância durou aproximadamente de 1850 até 1950.
A falta dessa visão acarretou a produção de teorias psicológicas, ainda hegemônicas, que explicam o desenvolvimento infantil de maneira naturalista e, portanto, operando com classificações e conceituações que almejavam o statusde lei universal. Desse modo, essas formulações propuseram categorias de análise fixas e imutáveis para qualquer criança de qualquer tempo e lugar. Cabe lembrar a existência de um padrão etnocêntrico a partir do qual tais teorias foram elaboradas – o padrão sempre foi a criança européia, branca e de lares burgueses.
O cenário em que a concepção clássica de infância pôde edificar-se começou a mudar em meados da década de 1950. Com efeito, as condições sociais, econômicas e culturais também começaram a alterar-se intensa e velozmente, implicando modificações profundas na própria infância. São exemplos de agentes importantes de tal mudança: a saída das mulheres do lar para o ingresso no mercado de trabalho; o aumento significativo e sempre crescente do número de divórcios; o desaparecimento de uma rede comunitária de apoio à educação das crianças; a recessão econômica, obrigando a um aumento da jornada de trabalho; e o incremento do papel da mídia na vida diária das crianças, que se tem tornado cada vez mais intenso.
No que diz respeito à mídia, existe a idéia de um imaginário construído social, cultural e historicamente, no qual a mídia em geral, e o cinema em particular, tem-se constituído como um ator central na elaboração do tipo de imaginário que perpassa a sociedade atual, cujas ressonâncias singulares, no tipo de infância na contemporaneidade, vêm-se constituindo há algumas décadas.

Como a infância se faz presente no cinema?

O cinema da infância não resulta de um qualquer modismo, portanto, esporádico como todos os modismos. Se no início a presença deste tipo de cinema se revelava discreta, paulatinamente ela foi-se ampliando e se impondo, como se pode constatar desde Chaplin até aos nossos dias. Saliente-se que não são apenas alguns filmes, mas centenas, que foram consagrados à infância e que – muitos deles – receberam consagração internacional: “O Garoto”, “Os 400 Golpes”, “A Guerra dos Botões”, “Central do Brasil”, “Filhos do Paraíso”, ...
Estamos, assim, em presença de um conjunto complexo de filmes que pode ser definido como um gênero, pois se debruçam sobre assuntos específicos, sobre temáticas bastante semelhantes, apesar de realizados em distintos lugares geográficos. É um gênero que não apenas possui seus códigos implícitos, temáticas recorrentes, estilo próprio, mas também esquemas narrativos tão precisos quanto imutáveis e que transitam espantosamente de um filme para outro e de um país para outro.
São estas características que configuram as marcas de um gênero. E, além disso, pela amplidão de seu universo, tem condições de instituir subgêneros: filmes de duos criança/adulto, sobre conflitos, sobre liberdade, sobre o luto ou a perda, sobre crianças e animais, sobre a crueldade infantil, sobre a amizade, a solidariedade e o amor, sobre o medo, sobre a delinqüência, sobre a fuga, sobre maus-tratos, sobre o espírito de grupo, sobre fronteiras, sobre o maravilhoso, sobre a passagem à idade adulta, sobre problemáticas sociais, sobre a nostalgia e, em alguns casos, filmes difíceis de classificar.
Na verdade, nos deparamos com um vasto território, ou um ciclo, se quisermos, com o qual – à imagem das crianças que ele descreve – nos sentimos envolvidos afetuosamente ao longo de nossa vida, na crença de o conhecer definitivamente, mas cuja intenção secreta é a de que tal ciclo nunca se encerre.

José Miguel Lopes

Universidade Estadual de Minas Gerais (Brasil)


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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