Ouvi e vi o cantor-compositor Fernando Girão contar, há já alguns anos, numa estação de televisão, a seguinte historieta verídica. Um seu amigo músico, salvo erro de nacionalidade americana, resolveu vir à Europa e aproveitar o ensejo para lhe fazer uma visita. O plano era desembarcar de avião em Londres, alugar um automóvel, atravessar a França e a Espanha e chegar a Lisboa. Meu dito, meu feito. A caminho de Folkestone, para atravessar o canal da Mancha pelo eurotúnel que liga a Grã-Bretanha à França (Calais), o nosso viajante ligou o rádio do carro. Ouviu quase sempre canções em inglês. Não estranhou o facto. Sabia que o inglês nasceu na Inglaterra e que é, de longe, o idioma dominante no “Reino Unido da Grã-Bretanha [Inglaterra, País de Gales, Escócia] e Irlanda do Norte”. Já em França, passou a sintonizar as estações de rádio francesas. A paisagem musical mudou imediatamente. Agora as canções eram quase sempre em francês. Também não estranhou o facto. Sabia que o francês é, de longe, o idioma dominante na França. Entrando em Espanha, nova mudança imediata de paisagem musical. Agora, as canções eram noutros idiomas bem diferentes. Também não estranhou o facto. Sabia que o reino de Espanha comporta nações diferentes, com idiomas próprios, e que o idioma dominante nesse país é o castelhano ou espanhol. Mas eis que o nosso viajante entra, finalmente, em Portugal. Aqui, aguardava-o uma surpresa. Em todas as estações que sintonizou só eram transmitidas canções em inglês. Por momentos, o nosso viajante ficou aturdido, com a sensação (alucinatória) de ter regressado ao reino de sua majestade britânica. Custava-lhe acreditar nos seus ouvidos. O nosso viajante sabia de fonte segura (o seu amigo Fernando Girão) que os portugueses tinham um idioma próprio falado por milhões de pessoas não-portuguesas em quatro continentes. Mas teve de render-se à evidência. Se cantavam nesse idioma, as suas canções não passavam nas ondas de rádio do seu país, ou só passavam minoritariamente. Lembrei-me desta historieta duas vezes, recentemente. A primeira foi em 18 de Março último, ao ler uma reportagem do «Público», a propósito da cerimónia do lançamento da nova estratégia para a energia do actual governo. Aí se dizia que o speaker (sic) do evento se enganara, ao chamar José Trócaste ao primeiro-ministro José Sócrates. A verdadeira notícia, porém, vinha na fotografia que acompanhava a reportagem. Aí vemos o primeiro-ministro a discursar sob o lema “RE.NEW.ABLE, a inspirar Portugal”. Fiquei a matutar na mensagem. Todo o acto de fala ou de escrita – todo o discurso falado ou escrito – pressupõe um autor que se dirige a alguém ou a um público, como foi magistralmente argumentado pelo saudoso Alan Henderson Gardiner, eminente egiptólogo e não menos eminente linguista, num livro muito esquecido mas magnífico (The Theory of Speech and Language, Oxford Clarendon Press, 1932). O autor, no caso em apreço, está perfeitamente identificado. Mas qual seria o seu público? A dúvida foi resolvida no mês passado, depois da sessão solene comemorativa do 36º aniversário do 25 de Abril, na Assembleia da República. O deputado João Soares, orador escolhido pelo partido do Governo para discursar nessa ocasião, declarou a páginas tantas: “Abril preencheu-se de hardware; o País necessita, urgentemente, de se reconhecer como dispondo de software; de formação, competência, cultura de decisão, suportadas em critérios de rigor e de convocação da inteligência resolutiva”. Sim, creio compreendê-lo, senhor deputado. Vossa excelência tem carradas de razão. Necessitamos urgentemente de convocar a “inteligência resolutiva” dos nossos concidadãos para apreciarem devidamente as musas que inspiram as egrégias decisões e os crípticos discursos dos governantes. Convenhamos, porém, que quando essas musas falam numa mistura bacoca de português e inglêche, não há sófetuère que nos valha, a nós, governados. A vontade de rir às gargalhadas (falo por mim) torna-se IR.RESIS.TÍVEL.
José Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
|