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Moral e preconceito

Já escrevi algures que o preconceito é um filho ilegítimo da moral. Acrescento agora que será órfão de nascença, no sentido universal de que não tem progenitores à altura de poder ter sido gerado para honrar ou pai, ou mãe. Aliás, pode afirmar-se, sem prejuízo dos processos de intenção em que a moral se acoberta e o preconceito se afirma, que no que diz respeito à moral que eleva o estatuto humano estamos a perpetuar uma barbárie.
No exacto momento da História conhecida em que os homens se poderiam desagrilhoar de tantas punições, neste momento, o preconceito lança âncora na barbárie e a moral estende arraiais nos compêndios de um Direito que justifica na prática última o esclavagismo e a falta de higiene intelectual e cívica. Talvez por isto se insista em representar a Justiça com uma venda no olhar, por ela mesma se representar à imagem dos homens, como um Deus irrefutável, sem poder lançar a sua espada sobre os pecados próprios, que são afinal os de nós todos.
Agarrados à toga, os dogmas dividem entre si uma genealogia em que a religião e a moral do Estado se aparentam. Mas não terá utilidade remontar na História para reconhecer que, neste agora, é o poder financeiro que acode, numa família de candeias às avessas, como tutor de todas as permissões ou da própria liberdade. E todos calamos a percepção vaga e insistente de que é a Humanidade que está no fio de uma navalha: por sua exclusiva responsabilidade e na pessoa de quantos lhe traçam um destino de que não se poderá recuar, mas será inevitável desviarmo-nos. Para bem da herança que tenhamos nas mãos: o céu na terra.
Se a moral digna desse nome deve reconhecer a todos, sem excepção, o direito a uma segunda oportunidade – o que implica o reconhecimento dos erros – não pode, porém, travestir-se de purgatório em que a Providência, mais tarde ou mais cedo, alivia a consciência e branqueia o passado. Temos de viver com as memórias frescas de um passado, como o do Holocausto, que não abona em favor de qualquer moral, como temos de viver com a noção evidente da nossa fragilidade como pessoas e cidadãos do mundo, recusando toda e qualquer conivência com os desvarios de cujo sentido a civilização e o progresso a todo o custo são um eufemismo omnipresente. Num mundo sem rédea, são precisamente a diferença, a mudança e a própria originalidade das atitudes que acicatam preconceitos. O paradoxo, sorrateiro e poderoso, instala-se com a complacência da indiferença dos líderes e da ignorância dos povos. Afinal o que nos une a todos, intrinsecamente de bom e útil à felicidade, que possa ser comungado?
Acima de tudo a propensão natural para dialogar, para termos soluções perante os dramas mais comezinhos e as tragédias mais disseminadas, para erguermos a celebrar. Quando o interlocutor privilegiado for o inimigo, quando as respostas resultarem de um esforço repartido, quando a comemoração reflectir um sentimento colectivo autêntico, talvez a moral se esvazie de toda a superficialidade para se firmar sobre um respeito sem exclusão, de raça, tradições, género, fé ou expressão física dos afectos. Para tanto, não podemos insistir em olharmo-nos de soslaio, em esconder o Sol com a peneira dos preconceitos, em firmar a nossa superioridade pela aparência dos patrimónios tão perecíveis como as nossas existências a prazo.
A cegueira de que a Humanidade enferma é a de confundir a liberdade da pessoa com a opressão do outro, seja pelo credo, pela lei ou pela supremacia da argumentação. Neste particular, muitos intelectuais e artistas colocam todas estas influências do seu pensamento e das suas estéticas no plano da sua intervenção cívica, fazendo tábua rasa da nossa condição e afinidade como espécie a um tempo sensível e pensante, sonhadora. Da qual nenhuma moral nos aliena.
As Artes têm de ser imunes ao preconceito, têm de incorporar toda a ciência de um direito natural e afirmar-se nessa moral da dignidade universal que encontra no trabalho criativo a solução para a barbárie.
Se não detemos o poder de nos libertarmos da dependência do trabalho, pelo menos que lhe reconheçamos a função de alimento da nossa integridade e da nossa criatividade; se impendem sobre nós as restrições do comportamento, que sejam tão espontâneas como a satisfação dos prazeres que dão sentido à experiência da vida; se sonhamos, possamos nem que seja por um momento da História ser actores do sonho, convidados da vida a vivê-la em comum, e sobretudo em paz. Pode não haver segunda oportunidade, pode não haver outra realidade.

Luís Vendeirinho

Escritor


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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