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Desenvolvimento do desporto, um processo amigável

Os mais fortes apoios aos grandes eventos desportivos vêm dos países com uma maior desigualdade na distribuição dos rendimentos, sendo os grupos populacionais economicamente mais débeis os maiores entusiastas, não se apercebendo que vão ter de pagar a factura com enormes juros.

A nomenclatura do costume afirma que se Portugal, conjuntamente com Espanha, ganhar a organização do Mundial de Futebol 2018, o país cabará por ter um retorno de 850 milhões de euros sem que haja qualquer investimento suplementar!!! Pode ser que seja verdade, contudo, não acreditamos porque, nos últimos anos, o país tem sido gerido na base de profundas e refinadas mentiras.
O desenvolvimento tem como objectivo principal promover a qualidade de vida das populações, pelo que o acesso ao desporto, inclusive aos espectáculos desportivos, no que diz respeito à economia, à educação, à cultura e à saúde, desde que objecto de políticas públicas apropriadas, pode contribuir para o processo de desenvolvimento humano de um país, de uma região ou de uma comunidade.
Assim, quando se organizam projectos de desenvolvimento do desporto, quer eles sejam eventos de diversas dimensões, quer eles sejam programas de promoção da prática desportiva, de construção de instalações desportivas ou de formação de quadros, deve ser tido em conta se eles são, na realidade, consequência de um determinado estádio de desenvolvimento social, económico e desportivo, e se, por sua vez, vão promover o próprio desenvolvimento social, económico e desportivo. Só nesta perspectiva, o desporto, enquanto instrumento de desenvolvimento, pode, utilizando uma ideia de Amartya Sen, assumir um estatuto de “processo amigável”, na medida em que satisfaz as necessidades materiais das pessoas e contribui para que elas possam atingir as suas aspirações mais profundas [«O Desenvolvimento como Liberdade», Gradiva, 1999].
Assim sendo, o desenvolvimento do desporto deve representar uma determinada ideia de mudança num dado sistema social, referenciado no espaço e no tempo e não uma simples exibição aparatosa de grandes eventos e recordes que, no fundo, só servem para inebriar as populações, sobretudo as menos favorecidas do ponto de vista cultural.
Infelizmente, isto é o que se passa com muitos eventos desportivos que, sustentados por recursos públicos, beneficiam exclusivamente uma elite de praticantes que alimenta o espectáculo desportivo sem que os decisores políticos tenham em conta que, no respeito pelo princípio da equidade de John Rawls [«Uma Teoria da Justiça», Presença, 2001], os apoios à elite só se justificam num equilíbrio virtuoso com a massa de praticantes, em benefício de todo o sistema desportivo e do país. Só assim, o desenvolvimento do desporto pode ser aceite como um “processo amigável”, intimamente relacionado com a expansão da liberdade de cada um em benefício de todos.
Ora, em muitas situações, nos mais diversos países do mundo, como refere Earle Zeigler – considerado na América do Norte como o Peter Drucker da gestão do desporto –, o que se passa com as políticas desportivas está longe de ser um “processo amigável” ao serviço das populações sobretudo das menos favorecidas [Sport Management Must Show Social Concern as it Develops Tenable Theory, «Journal of Sport Management» 21(3), 2007].
São diversos os estudos que têm vindo a questionar a bondade dos legados deixados pelos grandes e mega eventos desportivos que, na hora de balanço, afinal, não se revelam assim tão favoráveis para o desenvolvimento quanto à partida, previsivelmente, pareciam ser.
Na realidade, quando populações, no completo desrespeito pelos seus direitos, são deslocadas à força dos locais onde vivem só porque está em curso a realização de uma edição dos Jogos Olímpicos; quando ficam a pagar impostos exorbitantes porque os orçamentos foram obscenamente ultrapassados; quando os eventos levantam sérias dúvidas acerca da utilização de dinheiros públicos (como, entre nós, aconteceu com a construção de dez estádios de futebol para a realização do Euro 2004); ou quando as taxas de participação desportiva da generalidade da população são imoralmente baixas, é evidente que o desenvolvimento do desporto não pode ser entendido como um “processo amigável”, por muitas medalhas que se ganhem, por muitos recordes que se estabeleçam, por muitas lágrimas que, por amor à pátria, se vertam ou por muitas bandeiras que se coloquem nas janelas em honra dos heróis do desporto.
O problema é que, entre nós, as políticas públicas em matéria de desporto têm sido assim como que uma espécie de “bobo da corte”, pelo que só servem para entorpecer populações pouco informadas e menos cultas que se deixam levar por processos de propaganda desencadeados por entidades públicas e privadas que – pela lavagem ao cérebro que fazem às populações, ao estilo do I Got a Feeling– não ficam nada a dever aos melhores exemplos do fascismo alemão, italiano, espanhol, ou português ao tempo da outra senhora.
O paradoxo desta situação é que, como refere Holger Preuss, tendo em atenção o coeficiente de Gini, são precisamente os países com uma maior desigualdade na distribuição do rendimento nacional os mais entusiastas quanto à realização de grandes eventos uma vez que, na percepção dos grupos mais desfavorecidos, os benefícios acabam também por os beneficiar [Attracting Major Sporting Events: The role of local residents, «European Sport Management Quarterly» 6(4), 2006].
Assim, por mais paradoxal que possa parecer, os mais fortes apoios aos grandes eventos desportivos vêm precisamente dos países com uma maior desigualdade na distribuição dos rendimentos, sendo os grupos populacionais economicamente mais débeis os maiores entusiastas, não se apercebendo que, mais cedo ou mais tarde, vão ter de pagar a factura com enormes juros, como, aliás, está a acontecer agora aos gregos, aos portugueses e aos espanhóis.
Deste modo, não nos podemos admirar que sendo Portugal, de entre os 27 países da União Europeia, um dos que apresenta uma maior desigualdade na distribuição do rendimento e um dos mais pobres – 1,9 milhões de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza –, depois de ter realizado a loucura do Euro 2004, queira agora organizar o Mundial de Futebol 2018 a meias com Espanha, um país a viver igualmente uma profunda crise.

Gustavo Pires

Universidade Técnica de Lisboa


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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