O futebol espelha questões tão fundamentais como a identidade nacional, a questão racial, o império do lucro, a religião, a sexualidade. Mas o futebol também é dopagem, corrupção, violência, tráfico de jovens jogadores, branqueamento de dinheiro ilícito.
O escritor José Lins do Rego, apaixonado torcedor do Flamengo, costumava dizer, com aquele seu jeito de fazer amigos em todas as condições sociais, que “o conhecimento do Brasil passa pelo futebol”. Ele era um semeador de amizades e hoje, se vivo fosse, de certo não teria receio em adiantar que o conhecimento do nosso mundo globalizado passa inevitavelmente pelo futebol. Desde o exíguo Butão, na Ásia, até à pátria-mãe do desporto-rei, a Inglaterra; desde a África do Sul, sede do Mundial-2010, até à Islândia que bordeja o Pólo Norte – no futebol se espelham questões tão fundamentais como a identidade nacional, a questão racial, o império do lucro, a religião, a sexualidade, etc. E um futebol da mais desconcertante variedade, pois tanto o praticam os filhos dos pobres como os de uma burguesia individualista e usufrutuária, as mulheres como os monges budistas, os amadores de convívio desprevenido como os profissionais que levam o treino a um rigor extremo. Depois, se o contemplarmos com uma subtileza impregnada de um fundo saber desta modalidade, também descobriremos que o futebol de um Garrincha, ou de um Maradona, ou de um Messi, ou de um Cristiano Ronaldo, não é o mesmo futebol que exibem (ou exibiram) um Xavi, um Zidane, um Figo ou um Iniesta – de facto, nem todos pensam em movimento da mesma forma, nem para todos é igual o movimento. Peter Sloterdijk, no seu livro «A Mobilização Infinita», escreve: “quem se move, move sempre mais do que apenas a si próprio”. Há, em cada um de nós, quando se movimenta, um “excedente cinético” onde há cultura e política. Por isso, eu afirmo, diante de muita gente entumecida de escândalo, que não há Educação Física nem preparação física – há pessoas em movimento intencional. Há, afinal, se a fenomenologia não me engana, motricidade, ou seja, o corpo em acto. Ocorre-me, neste momento, o Herberto Helder de «Photomaton & Vox»: “Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que do outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi de mais. Ficou maior do lado que era dantes mais pequeno. Cortaram. Ficou de novo maior do lado que era primitivamente maior. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objectivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam”. O corpo não é uma realidade física. De acordo com Michel Foucault, “o corpo é uma realidade biopolítica” («Microfísica do Poder»). Por isso, esta actividade corporal que se chama futebol e ainda pelo entusiasmo absorvente e multitudinário que desperta, importa rodeá-lo de estudos lentos e sérios. Há mais países filiados na Fédération Internationale de Football Association (FIFA) do que na Organização das Nações Unidas (ONU). Ele é a causa das causas dos maiores índices mundiais de audiência televisiva. Até para o homem da rua, o futebol não é um acontecimento gratuito. Para ele, no futebol se confundem desde os sentimentos mais nobres, incluindo o retorno à pureza da infância, até aos gestos mais bélicos e ainda o poder mágico do acaso. Sobre o documentário “Garrincha, alegria do povo”, afirmou Glauber Rocha, no livro «Revisão crítica do cinema brasileiro»: “é antes de tudo visão do povo, do amor do povo, da miséria, da alegria, da superstição e da grandeza do povo, na figura do menino das pernas tortas, que é o improviso do povo”. No país do futebol, o Brasil, em 4.500 longas metragens, 109 referem-se principalmente ao futebol. A propósito, vejo-me em São Paulo, em Setembro de 1983, acompanhado pelo meu querido amigo Lino Castellani Filho (que integrou o primeiro governo do presidente Lula), a contemplar emocionado o filme «Pra frente Brasil», dirigido por Roberto Farias e onde se fazia o contraste entre o envolvimento popular com o Mundial de 1970, no qual o Brasil se sagrou campeão, e as torturas nas prisões do regime militar... É verdade que a difusão planetária do futebol começou por estar intrinsecamente relacionada com o imperialismo inglês do século XIX. No meu pensar, a desportivizaçãodos países é uma consequência da sua modernização. Eduardo Galeano, em obra que não se esquece, «Futebol: ao sol e à sombra», resume a história do futebol como “uma triste viagem do prazer ao dever”. Também hoje o futebol é uma deslumbrada aventura entre o prazer e o dever. O dever, por exemplo, de dizer aos consumidores passivos do futebol altamente competitivo que ele reproduz e multiplica as taras da economia capitalista (que é a nossa) e, por isso, nele, o mais importante, para os empresários que o comandam, é o negócio e o lucro. É preciso pensar o futebol, para além das ideias recebidas. Servindo-me do Roland Barthes de «O Grão da Voz», também eu insisto que é preciso abanar tudo o que nos apresentam como se fosse Verdade... Designadamente agora que tanto se fala do Campeonato do Mundo de Futebol! Mas que, a propósito, não se fala de dopagem, de corrupção, de violência, do tráfico de jovens jogadores, do branqueamento de dinheiro ilícito. É que o futebol que aplaudimos também é isto.
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
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