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Juegos de Niños

Ao mesmo tempo que colocam em evidência aspectos de uma infância vivida com plenitude e irreverência, as brincadeiras de crianças chamam a atenção para aspectos pouco edificantes da organização social.

Um encantador conjunto de quadros de Francisco de Goya, exposto no Museu da Real Academia de Belas Artes de São Fernando, em Madri, coloca-nos diante das seis telas Juegos de Niños, em que o conhecido e primoroso pintor espanhol representou cenas da vida cotidiana de crianças do último quartel do século XVIII.
O que me leva a escrever sobre esse tema é que considero significativo as crianças terem sido um dos objetos preferenciais nas obras de Goya, como também o fato de serem numerosos os artistas, especialmente do século XVIII, que se dedicaram ao tema da infância. Penso que um bom exercício de observação sobre as relações entre cultura e pedagogia é o de estar atento às maneiras como as culturas e seu tempo produzem distintas formas de pensar e representar as identidades e, ao fazer isso, de produzir lugares de sujeito.
Dedico-me aqui a olhar um pouco para alguns niñosde Goya, com a intenção de fazer disso um convite para a reflexão de cada leitor e leitora sobre como se está construindo uma representação da infância de hoje e, com ela, inspirando um modo de ver, pensar e ser criança hoje. Originárias de esboços do artista para tapetes, as telas da série que mencionei mostram brincadeiras. Nelas, as crianças de Goya empenham-se em variados folguedos. Em duas cenas (Niños jugando a los soldados e Niños jugando a los toros) imitam atividades do mundo dos adultos. Em outra dupla (Niños jugando al balancín e Niños jugando a la píndola) divertem-se em experimentos sobre os movimentos de seus próprios corpos. Nas outras duas cenas, demonstram engenhosidade e imaginação em travessuras (Niños peleándose por castañas e Niños buscando a nidos).
Estas obras, compostas entre 1775 e 1786, representam brincadeiras de rua praticadas por meninos de diferentes idades. Não há meninas brincando nas cenas de Juegos de Niños. Seria indício de que nos espaços públicos da época não havia lugar para o infantil feminino? Ou meninas não deviam brincar nas ruas, pelo menos não junto com os meninos? Contudo, por entre as figuras de grupos dos mais crescidos que se entregam às brincadeiras, esboçam-se nos quadros ternas imagens criadas pelo artista para expor crianças bem pequenas. Entre estas está uma menininha, des  protegida e chorosa.
As análises da obra de Goya ressaltam invariavelmente ter sido o mundo infantil uma de suas fontes preferenciais de inspiração e por isso mesmo tratado com muita ternura. Atento observador, neste conjunto de cenas, Goya parece conseguir captar e imprimir em suas telas o movimento quase instantâneo das figuras infantis sempre ativas, assim como reproduzir a espontaneidade de suas expressões. Para muitos, a numerosa presença de crianças em obras artísticas, especialmente na pintura, tem sido interpretada como expressão do desejo de preservação de uma das faces admiráveis da vida, aquela marcada pela ingenuidade, pelo olhar franco e o gesto espontâneo, pela ausência de malícia e de intenções clandestinas. Poderíamos pensar assim ainda hoje?
Em Niños jugando a los soldados, a crítica de Goya a certas facetas da sociedade de seu tempo se expressa ao expor suas crianças em jogos de imitação nos quais se fazem soldados, reis ou generais envergando recortes e dobraduras de papel, assim como assumindo gestos que ridicularizam a autoridade. Em Niños jugando al balancín, um pequeno grupo secundário de crianças escolares uniformizadas e retraídas faz contraponto aos demais meninos andrajosos e irreverentes que se divertem arrebatadamente em torno de um balanço improvisado com pedaços de madeira. Em Niños peleándose por castañas, aparece a única figura adulta da coleção, um senhor com anel na mão esquerda que lança castanhas de uma janela para as crianças, enquanto estas engalfinham-se na luta para alcançá-las.
E assim seguem as cenas de “brincadeiras de crianças”, impregnadas de elementos sugestivos que, ao mesmo tempo em que colocam em evidência aspectos de uma infância vivida com plenitude e irreverência, chamam a atenção para aspectos pouco edificantes da organização social da época e apontam para o olhar crítico do pintor sobre a amarga desigualdade que o cerca.

Marisa Vorraber Costa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana (Brasil)

 


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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