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Educação Inclusiva em tempos de cólera

A Educação Inclusiva não diz respeito só aos alunos que apresentam algum tipo de dificuldades, mas a todos. O facto de uma criança poder aprender, conviver, partilhar o dia-a-dia, com colegas que apresentam alguma dificuldade inabitual, é uma fonte de enriquecimento escolar e humano.

Em Novembro de 2009, no congresso internacional promovido pela Associação Nacional de Docentes de Educação Inclusiva, o professor Martyn Rose, da Universidade de Aberdeen (Escócia), ao falar numa sessão dedicada à formação de professores para a inclusão, usou uma metáfora muito interessante que passo a reproduzir.
Durante as epidemias de cólera no princípio do século XX, era prática corrente as pessoas que mostravam sinais de ter contraído a doença serem de imediato afastadas do convívio das restantes, com medo do contágio. Esta medida, aparentemente correcta, revelou-se absolutamente ineficaz, porque, por um lado, quem era separado não melhorava e frequentemente morria, e, por outro, a separação das pessoas doentes não impedia que outras fossem atingidas pela doença. Esta medida de “quarentena” não era eficaz nem para quem era separado nem para quem permanecia no convívio social. Só mais tarde se descobriu que a cura para a cólera não residia no isolamento dos doentes, mas sim na prevenção, sobretudo através de medidas de higiene. Descobriu-se, assim, que a cólera devia ser combatida com medidas que diziam respeito a todos e não se resolvia tratando de alguns e ignorando os restantes.
Esta metáfora parece-me muito interessante para nos ajudar a analisar o momento da Educação Inclusiva, em Portugal e no mundo. Destacaria três reflexões.
Antes de mais a ineficácia da separação. Quando se aponta a uma criança com dificuldades o caminho das escolas especiais, devemos saber que apesar deste encaminhamento ser sempre feito em nome de um melhor atendimento, isto não se verifica. Muitos dados disponíveis pela investigação dizem-nos que as expectativas dos técnicos sobre o sucesso da criança estão diminuídas. Assim, as actividades de habilitação perdem frequentemente o seu horizonte temporal ou a clareza dos objectivos a atingir; convertem-se rapidamente em actividades de manutenção e de ocupação de tempo. As intervenções que deveriam ter objectivos e metas temporais definidas, tais como as actividades ocupacionais, a psicomotricidade, etc., tornam-se actividades rotineiras que, com o passar do tempo, acabam por esbater a sua missão original de habilitar a pessoa para uma vida mais participativa e autónoma.
Outro aspecto refere-se à importância da prevenção. É conhecido que a Educação Inclusiva não diz respeito só aos alunos que apresentam algum tipo de dificuldades, mas a todos. O facto de uma criança poder aprender, conviver, partilhar o dia-a-dia com colegas que apresentam algum tipo de dificuldades inabituais é, para ela, uma fonte de enriquecimento escolar e humano – há pouco tempo, uma aluna do 7º ano da Escola da Ponte, quando perguntada sobre o que pensava da presença de colegas com condição de deficiência na mesma sala de aula, dizia, com uma surpreendente naturalidade, que todos aprendiam com todos e que depois de conviver com colegas com deficiência ficava mais capaz para tratar de pessoas da sua família que eventualmente viessem a ter dificuldades semelhantes. A Educação Inclusiva é, desta forma, uma importante prevenção precoce contra atitudes que colocam as pessoas com deficiência como devedores e objecto de uma hipócrita “tolerância”.
Por fim, a metáfora do tratamento da cólera remete-nos para as alternativas de tratamento. O certo é que desde que a cólera se manifesta é preciso fazer algo que não seja segregar – isso já sabemos que não funciona... Mas ainda encontramos vozes que advogam a terapia da segregação. Assistimos a reiterados ataques à forma como a Escola actual se encontra organizada (e, consequentemente, à Educação Inclusiva). Por exemplo, há pouco tempo, no programa de televisão “Plano Inclinado”, um interveniente defendeu – sem a oposição dos comentadores habituais, Medina Carreira e Nuno Crato – que a escola salazarista era melhor que a escola actual!...
Mas não se diz qual é a alternativa a esta bolorenta escola. Responderão, talvez, vagamente, que é a escola da exigência, da qualidade, da disciplina. E dizem isto como se fosse novo e original!
Quando acabei a minha quarta classe, dos 29 alunos da minha escola pública, só eu fui para o liceu – o que é que estes “analistas” propõem para os outros 28? Qual foi o erro dos meus colegas? Não teriam qualidade? Não teriam ambição? Não teriam disciplina?
A Escola de hoje enfrenta problemas que exigem respostas novas e compreendam novas atitudes, posturas e necessidades de alunos e professores. Criticar a Escola de hoje em nome dos valores “do antigamente” lembra aqueles dois personagens dos “Marretas” que, qualquer que fosse o espectáculo a que assistiam, sempre apontavam desgraças e evocavam os “bons velhos tempos”.
A Escola em tempo de cólera… Não a doença, mas uma cólera biliosa contra um nebuloso e desconhecido novo; uma cólera que, confundindo princípios e ignorando práticas e fundamentos, despreza o esforço que a Escola e os professores (chamados de “essa gente” por estes comentadores) fazem no dia-a-dia para qualificar um país que, afinal, parece ter os seus maiores problemas não na Educação, mas nas áreas de que estes senhores são oriundos (existe o termo economês?).
Há uma grande diferença ética entre estes “especialistas instantâneos” e os professores – é que estes, todos os dias, olham os problemas da Escola como um ponto de partida, em lugar de os verem como um concurso sobre quem diz mais banalidades sobre Educação.

 

David Rodrigues

Universidade Técnica de Lisboa
Presidente da Associação Nacional de Docentes de Educação Especial


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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