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Contradições, cansaço, democracia...

Será que a reivindicação de uma escola se poder constituir como espaço politicamente mais democrático, culturalmente mais significativo e socialmente mais justo não passa, afinal, de um sonho de uma madrugada distante de Abril?

Vivemos num mundo marcado pela indiferença que o cansaço alimenta. Por isso é que a democracia, como conceito, tende a ser reduzida aos seus rituais minimalistas, enquanto as agências de rating lá vão governando o mundo em função de uma agenda que há muito deixou de ser o rabo-de-fora do gato-escondido.
Neste sentido, e face a esta tese, o cansaço é inimigo da democracia. Mata o desejo de acreditar e a vontade de intervir. Remete-nos para o limbo do individualismo e a vida passa a ser conjugada, por isso, em modo de sobrevivência.
O que fazer? As respostas parecem ser inevitáveis, ainda que, no actual estado de coisas, nem sempre sejam exequíveis. Não chega apelar à resistência ou tão pouco refugiarmo-nos em frases tão perfeitas quanto inúteis. O desafio é complexo e os alvos nem sempre são, apenas, aqueles cujos nomes denunciamos na rua.
Por isso é que este é um tempo difícil de viver. Um tempo que põe à prova a coerência entre os princípios que defendemos e as acções que protagonizamos. Um tempo que se constrói tanto em torno de pragmatismos ressemantizadose de ressemantizações pragmáticas, como de silêncios cúmplices ou de olhares selectivamente benevolentes.
Substitui-se a palavra ‘controlo’ pela palavra ‘regulação’ para que a realidade seja a mesma de sempre. Uma realidade onde os actores educativos locais são objecto de olhares entre o paternal e o desconfiado, como se fossem incapazes de reflectir sobre os acontecimentos que lhes dizem respeito ou só o fizessem para assegurar as respectivas mordomias corporativas.
Defende-se a necessidade de nas escolas se implementarem práticas de avaliação formadora, quando os donos do poder se referem à avaliação escolar dos alunos, ao mesmo tempo que se impõe, ainda que de forma estrategicamente prudente, a necessidade de programas de avaliação normativa quando tal avaliação passa a ter a ver com o desempenho dos professores.
Será mesmo este último tipo de avaliação que, segundo as versões oficiais, permitirá resgatar-nos da cauda dos países da OCDE nos domínios da literacia e da matemática, ainda que, estranhamente, se faça de conta que este é um objectivo menor quando se fala dos professors-que-ainda-não-o-são no canto onde se confinam as actividades de enriquecimento curricular (AEC). Por que é que não se defende a avaliação de desempenho desta gente? Talvez porque se tem medo de correr o risco de conferir visibilidade às deploráveis condições profissionais e de trabalho destes profissionais da educação. Avaliar? Sim, mas só quando isso der jeito aos proprietários do Ministério da Educação.
O termo ‘eficiência’ passou a ser declinado no singular quando se refere à administração das escolas, mesmo que seja em nome de uma tal eficiência que se apregoa a excelência das situações de colaboração profissional entre docentes. Os arautos maiores de uma opinião publicada tão unânime quanto arrogante reivindicam maior rigor e exigência em textos marcados, justamente, pela má-língua, a ignorância e a desonestidade intelectual que, só por si, podem ser entendidos como manifestações exemplares da falta de rigor e de exigência que esses mesmos arautos tanto apregoam.
Muitos daqueles que defendem a necessidade de as escolas se afirmarem como espaços de instrução são os mesmos que, por exemplo, na situação de formandos, recusam, de forma veemente, a instrução como modo de acção educativa. Daí que a democracia seja algo que alguns exigem quando sentem que os seus direitos estão a ser postos em causa, transformando-se, de imediato, num incómodo quando as suas parcelas de poder são objecto de interpelação por parte de quem possa ser sujeito-alvo do exercício de um tal poder.
O cansaço, deste modo, acumula-se à medida que se somam e, sobretudo, se ignoram as contradições. É como se fosse aceitável que as palavras sejam usadas para dizerem exactamente o contrário daquilo que pretendemos dizer. Como se essas palavras tendessem a ser progressivamente configuradas como palavras de ordem. Por isso, não será certamente por acaso que em demasiados projectos de formação de professores se propõe o que se deve fazer numa sala de aula através da utilização de estratégias pedagógicas e didácticas que contrariam aquilo que acabou de se prescrever.
Será que a reivindicação de uma escola se poder constituir como espaço politicamente mais democrático, culturalmente mais significativo e socialmente mais justo não passa, afinal, de um sonho de uma madrugada distante de Abril?
Apesar de tudo, apesar do cansaço e das tentações por este geradas, não poderemos ser indiferentes à acção daquelas e daqueles que, dia após dia, lá vão encontrando soluções aos mais diversos níveis e planos, engolindo uns sapos e enfrentando de forma arguta, tão paciente quanto persistentemente, quer os constrangimentos inevitáveis, quer os constrangimentos inúteis que se lhes impõem nos quotidianos escolares em que vivem.`
São esses professores que nos fazem acreditar que cada um de nós ainda pode fazer a diferença, apesar das contradições e do cansaço. Apesar, também, de sabermos que é mau sinal defendermos que o trabalho docente de hoje implica, à sua medida, uma dose de militância que nos possa mostrar como é que um outro mundo é possível.

Ariana Cosme
Rui Trindade

Universidade do Porto


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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