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Em memória de Rogério Fernandes

Há uma constante no seu trabalho de investigação – uma quase obsessão – que dá pelo nome de imperativo da cidadania e que determina uma prática social à altura da dignidade humana, onde a pessoa se assuma como um fim em si mesma e não apenas como um recurso.

Rogério Fernandes, recentemente falecido, não foi um Homem comum: reunia a lhaneza e a afabilidade inexcedíveis a uma cultura vastíssima, servida por uma inteligência luminosa e arguta e por um sentido da responsabilidade social e política que desde sempre o manteve pronto e disponível para abraçar as grandes causas da justiça e da dignidade humanas.
A sua dedicação ao estudo dos problemas do ensino e da educação na perspectiva histórica, em domínios em que foi grandemente pioneiro e que reclamaram uma boa parte da sua vida, é a prova evidente deste carácter: não se tratou de uma prática científica imposta pelo simples culto do passado ou determinada por exigências de carreira ou até por compromissos de circunstância académica. Tratou-se, antes, de uma prática científica comprometida com a construção crítica do sentido da acção humana num contexto social em que a educação representou, como representa ainda, um factor fundamental de discriminação, de exploração e de desigualdade, quando deveria justamente representar o contrário.
Não é assim por acaso que, no plano da investigação, o vemos empenhado em explorar e aprofundar problemáticas que cruzam a educação com rupturas sociais e políticas, bem como com figures emblemáticas que são os seus porta-vozes, como dá conta o título de uma boa parte das suas obras.
Como o próprio Rogério viria a escrever na obra «Educação: uma frente de luta», há uma constante no seu trabalho de investigação, uma quase obsessão, que dá pelo nome de “imperativo da cidadania”. Só isso é que determina uma prática social à altura da dignidade humana, onde a pessoa se assuma como um fim em si mesma e não apenas como um recurso – recurso humano, como é vulgar dizer-se –, um instrumento manipulável pelos impulsos das circunstâncias ou das exigências económicas e tecnológicas. Como Rogério aí escreve: “Ao impulso imediatista no sentido da resposta contundente a quem nos agride deve sobrepor-se um esforço no sentido da crítica e da clarificação”.
Esta vertente ética e política que enforma a sua investigação estende-se também à sua prática quotidiana pela importância que atribui ao associativismo e ao cooperativismo, dimensões omnipresentes em grande parte da sua actividade, desde o exercício de cargos directivos na academia universitária de Lisboa (Movimento Pró-associativo, enquanto estudante) nos anos 50, até à de presidente do Instituto Irene Lisboa, já na década de 90, passando pela direcção da revista «Seara Nova» e, mais tarde, de «O Professor», órgão-sustentáculo desse já longínquo Grupo de Estudos do Pessoal Docente do Ensino Preparatório e Secundário do princípio dos anos 70.
Esta dimensão associativa e interventiva encontrou no 25 de Abril uma oportunidade de eleição para se exprimir política e administrativamente, embora por pouco tempo, quando foi convidado pelo ministro Magalhães Godinho para director-geral do Ensino Básico, cargo que exerceu entre 74 e 76, altura em que foi afastado por Sottomayor Cardia. O seu profundo conhecimento do sector, o acompanhamento muito próximo que lhe dedicava a partir da condição de investigador junto da Fundação Calouste Gulbenkian, o sentido carismático da sua relação, simultaneamente imponente, cúmplice e solidária, tornaram-no o pivot central da revolução ao nível das medidas profundamente inovadoras que foram introduzidas nesse sector de ensino.
Relembremos rapidamente alguns dados caracterizadores da situação em que se encontrava o 1º Ciclo do Ensino Básico para se poder ajuizar melhor a grandeza do desafio que tinha pela frente:

– um nível de repetências entre os 37-40% no fim do que então se designava por 1ª classe do primário;

– um horário de funcionamento lectivo em três períodos diários, cada um com três horas, prática dominante nas zonas socialmente mais problemáticas;

– um corpo profissional de professores profundamente desmoralizado e socialmente desvalorizado, cuja carreira incluía algumas letras de vencimento inferiores às dos contínuos do sector bancário;

– a existência de um número ainda significativo de regentes escolares, isto é, profissionais recrutados segundo o modelo de Carneiro Pacheco, de 1936, “que só tinham obrigação de ter concluído o terceiro ano do ensino primário” para poderem ser professores, conforme diz Rogério na sua última entrevista à PÁGINA (edição Primavera/2010).

Estes dados dizem bem do estado do sector e configuram de algum modo a magnitude do desafio que o director-geral Rogério Fernandes tinha pela frente.
O recurso ao trabalho de equipa, a prática da solidariedade militante e a desburocratização das relações de trabalho, bem como a disponibilidade permanente, o sentido de humor irresistível, a capacidade de mobilizar e de multiplicar as energias de todos os colaboradores – entre os quais é justo destacar o saudoso Salvado Sampaio – foram o grande segredo para fazer face ao estado calamitoso em que se encontrava o ensino primário. Recordo algumas das medidas mais significativas então adoptadas:

– a introdução do regime de fases e a reformulação completa dos programas de formação;

– a dinâmica da formação contínua dos professores a partir da instauração e intensificação das relações de colectivos de professors com as escolas do Magistério (grande autonomia funcional ao nível distrital para efeitos de formação e de reorganização dos serviços; suspensão do serviço docente aos sábados para investir na formação e mobilização do aparelho da inspecção para tarefas pedagógicas em vez de meramente inspectivas);

– a profunda reforma das escolas do Magistério, com vista à construção de uma nova identidade profissional dos professores: o professor social em vez do professor escolar.

A título ilustrativo do que foi o sentido da educação sustentado por Rogério Fernandes, aqui deixo as nobilíssimas palavras que dão corpo às grandes finalidades dos Programas do Ensino Primário Elementar de 1975, que deveriam fulgurar no pórtico de todas as escolas portuguesas:

–  “Educar é aceitar e respeitar a pessoa, ajudando-a a criar a sua felicidade e a participar na felicidade dos outros”;

– “Educar é um caminho para a extinção de privilégios económicos, políticos e culturais”;

– “Educar é formar homens livres, isto é, homens capazes de se comprometerem em tarefas de emancipação individual e colectiva”.

Manuel Matos

Universidade do Porto


  
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Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

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