Página  >  Edições  >  Edição N.º 189, série II  >  Tributo a um Mestre da nossa república

Tributo a um Mestre da nossa república

O I Congresso Pedagógico realizado depois da implantação da República teve lugar no Porto, em Abril de 1914, por iniciativa do Sindicato dos Professores Primários de Portugal, criado em 1911. O programa oficial do congresso assentava em três eixos fundamentais: “função social da escola”, “magistério primário” e “pedagogia: processos para a educação da inteligência e da memória”. Entre as conclusões dos debates encontramos, por exemplo, a necessidade de criação de cursos “pós-escolares”, numa antevisão espantosa sobre o que hoje se entende por formação ao longo da vida. Aliás, dois anos antes, em 1912, a Escola Normal do Porto abrira-se para os primeiros cursos de Verão, nos quais participaram 120 professores de todo o país.
São histórias como estas que fazem a história da Educação do nosso país, conforme nos dá conta José Gomes Bento em «O Movimento Sindical dos Professores, Finais da Monarquia e I Republica» (1978), uma obra centrada na memória social dos professores e que, por isso mesmo, vale a pena revisitar. Ontem como hoje, o “desinteresse da profissão por si mesma”, associado “ao esquecimento do seu passado”, representam factores de mal-estar que, impedindo a posse plena do tempo que nos coube viver, dificultam os processos, pessoais e colectivos, de “tomada de destino”.
Para mim, como para uma geração inteira de professores do Ensino Básico formados pela Escola do Magistério Primário do Porto no final do século passado, o Bento, como carinhosamente chamávamos ao nosso Mestre, representa um expoente máximo em termos de presença pedagógica, humana e cívica, justificando nessa medida um inalienável dever de memória.
Foi justamente nessa condição de «herdeira», grata e eternamente aprendente, que, pela mão de outro nome de referência para a classe docente, Costa Carvalho, um dia me vi depositária do precioso manuscrito do texto que aqui se publica. São assim os fios que tecem a memória, misteriosos, surpreendentes, feitos muitas vezes de cumplicidades afectuosamente subterrâneas.
Neste texto, datado de 1984, mas de uma actualidade desconcertante, José Gomes Bento, exorta-nos a perseverar no compromisso em prol do futuro da educação, pensando e agindo “no intervalo entre o optimismo que dá a esperança e o pessimismo que nos faz lúcidos”, isto é, actuando sobre o lado dinâmico das contradições onde, afinal, reside a força motriz do tempo.

Isabel Baptista

Dez anos depois de Abril, que contradições na educação portuguesa?

A contradição entre o capital de ideias, projectos, experiências e lutas que tentam repor em novos planos a função social e pedagógica da escola e os bloqueios conservadores de estruturas e actores sociais que sucessivos governos e Ministérios da Educação cristalizam, justificam e representam nas suas políticas educativas. Políticas desconexas, mas nem por isso, ou talvez por isso mesmo, menos actuantes. Será esta a contradição essencial?
A gestão democrática foi uma das conquistas mais importantes do 25 de Abril. E diariamente vivemos a contradição entre as tentativas de professores e alunos de se apoiarem na gestão democrática para iniciativas autónomas e criativas e o peso paralisante dos espartilhos legais e dos problemas desgastantes dessas casernas inóspitas onde milhares de jovens e centenas de adultos diariamente se consomem.
E esta máquina absurda que se chama sistema educativo português que provavelmente já não serve os interesses de nenhuma classe social, mas continua a mover-se e a alimentar-se dos seus próprios insucessos? Contradição entre os direitos e aspirações das crianças e jovens portugueses, renascidos em Abril, e a realidade cruel dos fracassos a que a escola os submete.
Contradição entre uma sociedade que tem necessidades urgentes e energias potenciais para se transformar e as forças político-sociais que se apropriam do desejo e do sentido de mudança para fazerem deles assuntos de retórica discursiva e manto para encobrir os objectivos não-ditos.
Contradição entre a quantidade e qualidade do esforço de reorganização dos esquemas mentais, atitudes e processos de trabalho para que surja um educador de novo tipo, que uma educação para o desenvolvimento democrático do País exige, e a forma como o Poder trata a formação, o estatuto e as condições de vida dos professores.
Dez anos depois, nem o discurso ritual sobre o tempo original de um Abril mítico, nem o silêncio quando parece nada mais haver para dizer e fazer.
Talvez pensar e agir no intervalo entre o optimismo que dá a esperança e o pessimismo que nos faz lúcidos.
Reforçar a intervenção sindical a todos os níveis, denunciando as situações e os seus agentes a dando voz à expressão dos legítimos interesses ofendidos. Defender e alargar todas as experiências que contribuam para renovar a vida democrática das escolas. Abrir e reabrir o debate sobre os problemas e ideias em confronto no domínio da educação, interessando diversos sectores sociais e culturais. Actuar sobre o lado dinâmico das contradições.

Gomes Bento (1984)

Escola do Magistério Primário do Porto


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 189, série II
Verão 2010

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo