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Universos fechados versus universos abertos

Em termos gerais, será seguro afirmar-se que o paradigma da sociabilização se alterou de modo radical, sobretudo quando nos reportamos à realidade daquele que se convencionou chamar de mundo desenvolvido. Os tempos recentes em que nos libertámos de muitos dos espartilhos morais e ideológicos, também ao compasso do salto que a humanidade deu em termos dos veículos de comunicação e do acesso a bens de conforto, de cultura e de lazer, evoluíram com grande voracidade perante nós que nos confrontamos com a condição de espectadores, em supremacia com a de actores.
O tempo do viver com os outros, ou mesmo para os outros, deu lugar a uma percepção incómoda de vivermos entre os outros. O reflexo de uma sociedade em que não há referenciais de um sentido para o trabalho, para a própria aprendizagem, cujos cidadãos não perspectivam um futuro em que possam ser parte inclusa, é um sistema fechado em si, sobre a sua condição volátil, na fronteira que oscila entre a vertigem da mudança e a incapacidade de vislumbrar um objectivo para a mudança. Porque a mudança nos surpreendeu, agindo sobre o nosso modelo mental antes que, de forma lúcida, tenhamos podido tomar a rédea. À realidade podê-la-íamos comparar com um cavalo que se lança no galope desenfreado, enquanto nos habituáramos a vê-lo sob o passo do nosso controlo, levando-nos por territórios que não têm a ver nem com a nossa dominação, nem com a nossa condição frágil.
Inúmeros exemplos de sociabilização, em família, entre amigos, decorrentes do convívio que a experiência da Escola despertava, até na liberdade sã de que foi expoente por pouco tempo, se poderiam dar. Contudo, esses espaços privilegiados de convívio não foram imunes à panóplia de objectos que a tecnologia produziu. Sobreveio assim uma ilusão de conquista sobre um tempo que era escasso, sobre um espaço ignorado, como se impôs uma percepção de determos um poder que nos libertava das limitações humanas. Essa evolução das formas como nos relacionamos é porém ardilosa. Conduz pelo caminho de uma renúncia à saciedade do espírito de aventura, porque temos o objecto da aventura na palma da mão. O saber exige de nós menos esforço, menos curiosidade, menos estudo, porque algures ele nos é devolvido na forma acabada do seu resultado. A presença poderosa do progresso, por ironia, é a inércia perante uma cultura de mudança de hábitos, sem que se ouse perceber que, ali à nossa frente, temos enfim os instrumentos para mudar todo um modo de vida, até então sedentário, programado, pouco criativo.
A sociabilização faz-se, cada vez mais, à sombra das relações institucionais. Cada vez menos se estabelecem laços pessoais de moto próprio. A complexidade da realidade objectiva exige e arrasta consigo a complexidade das normas e da regulamentação das relações sociais. Não existe a possibilidade de uma previsibilidade das respostas aos estímulos que o colectivo produza sobre si mesmo. Aos cidadãos já só se pode garantir o exercício da cidadania, esgotado nos universos fechados entre que apenas se traçam ténues pontes. É destes pressupostos de alienação que temos de nos apartar. Antes do mais, por antecipação à própria alienação enquanto limitação da nossa consciência, do poder de iniciativa e da criatividade. Estas virtudes que nos asseguram a capacidade de mudar e de reduzir as rotinas à sua expressão mínima.
A parcimónia na utilização dos bens tecnológicos, com a inteligência em deles tirar apenas o proveito para alívio do trabalho, ou dos trabalhos, será uma das primeiras atitudes a tomar em favor da nossa libertação desses universos fechados. Mas o passo importante, que nos fará cidadãos do mundo, será a oportunidade de lhe reconhecermos a diversidade in loco. A assunção de que podemos contrariar o sedentarismo, a que estamos vinculados de raiz, poderia abrir horizontes insuspeitos na forma de os povos se relacionarem. Os espaços de convívio a que fiz alusão, manietados pelas rotinas sociais, as próprias condições do exercício da confraternização, subjugadas pelo sentimento da insegurança, o olhar despreocupado sobre o mundo, desatento na urgência das máquinas, talvez se possam recuperar desse tão nobre sentimento de que, se há uma razão para as coisas, ela está fora de nós mesmos enquanto indivíduos, e estará em nós pessoas que não nos limitamos a viver entre os outros.
Mas o corolário dessa nossa sociabilização positiva será talvez o contágio dos benefícios que este estádio de evolução, em grande parte das sociedades, permitiu à dignidade dos homens. Os universos abertos, se interpenetrados, colheriam os frutos da resistência à sedentarização compulsiva, e a miscigenação não será a derradeira utopia por concretizar, mas poderá ser uma delas. Não como imperativo ou inevitabilidade, mas como resultado de uma reconciliação com a própria natureza. As conquistas da tecnologia seriam residuais, um proveito da inteligência num universo em equilíbrio estável, em que os movimentos e o pulsar da vida estariam em sintonia com a felicidade de todos nós. Para além do que qualquer outra globalização poderá justificar, sem o sacrifício da nossa tão preciosa liberdade.

Luís Vendeirinho


  
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Edição:

Edição N.º 187, série II
Inverno 2009

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