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Ita missa est

Num das suas últimas alocuções públicas, a ex-ministra da Educação sentiu-se compelida a referir que deixava, como seu legado, melhores escolas e mais alunos nas escolas. Uma frase que teria tudo para ficar para a História se a necessidade de trilhar outros caminhos no domínio em causa não nos aconselhasse a esquecê-la o mais rapidamente que soubermos e pudermos.
Esqueçamos, por isso, a ex-ministra, mas detenhamo-nos um pouco nas palavras que proferiu quase à beira da despedida. São palavras sobre as quais vale a pena reflectir, porque encerram em si um modo de pensar a educação que importa interpelar, sobretudo, quando se proclama como uma vitória retumbante o facto de haver mais alunos nas escolas.

O que é que isto significa? Que milagre é que ocorreu nos últimos quatro anos que permitiu que o abandono escolar fosse reduzido de forma tão drástica?

Os números mostram-nos, de facto, que a percentagem de alunos que abandonou as escolas foi baixando. Neste caso, então, a ex-ministra parece falar verdade, ainda que seja necessário continuar a inquirir a que é que se deveu um tal milagre. Os arautos do costume dir-nos-ão que tudo se ficou a dever à estratégia esclarecida, à coragem indómita e à perseverança da ex-ministra e da sua equipa. Um blá-blá-blá que é mais cínico e perigoso do que inútil, quanto mais não seja porque é incapaz de demonstrar se as nossas escolas se transformaram em contextos educativos epistemologicamente mais democráticos ou se, pelo contrário, continuam a ser escolas de elites massificadas, tal como um dia Eurico L. Pires tão bem caracterizou. Este é o problema maior que temos que enfrentar. Um problema que, pelos vistos, não o é, nem para a ministra, nem tão pouco – e é importante que o digamos – para muitos dos nossos colegas professores. Para todos estes actores, estamos perante uma utopia pedagógica, num tempo onde há muito se enterraram os devaneios dos sonhadores. Daí que não haja problema algum, mas tão somente a manifestação de um idealismo pedagógico que tende a confundir o desejo com a realidade.
Diga-se o que se disser, e porque o espaço é curto para aprofundar um tal debate, pertencemos à legião daqueles que defendem estarmos, deveras, perante um problema, sobretudo porque pensamos que, numa sociedade dita democrática, não podemos ficar satisfeitos, apenas, nem com o facto de todos os alunos poderem aceder à Escola, nem com um tipo de sucesso escolar que se constrói por via da demissão dessa mesma Escola. Uma Escola onde continua a haver insucesso que pode ser justificado por, nesse contexto, não se conseguir interpelar os seus modos de funcionamento ou o tipo de desafios culturais que negligenciam a inteligência e as singularidades várias dos seus alunos.
É face a este conjunto de argumentos, sumariamente enunciados, que defendemos que há um problema sério a enfrentar no seio das nossas escolas. Um problema que, diga-se em abono da verdade, não poderia ser resolvido no espaço de uma legislatura, porque obriga, entre outras coisas, a medidas estrategicamente circunscritas, cujo impacto interessa monitorizar com prudência. Um problema difícil de resolver porque nos obriga, também, a enfrentar idiossincrasias profissionais e culturais diversas e isso não é nem politicamente lucrativo, nem isento de sofrimento e perturbação.
É a partir deste momento que importa inquirir se a ex-ministra nos deixou, como ela o afirma, melhores escolas. Ainda que alguns possam considerar que Maria de Lurdes Rodrigues tentou enfrentar as referidas idiossincrasias profissionais e culturais dos professores, perdendo, com isso, capital político que acabou por lhe custar a saída do novo governo, importa afirmar, de forma clara, que não fez e mesmo quando o pareceu fazer, fê-lo pelas razões erradas.
O que a ministra tentou enfrentar foi o combate ao défice, no âmbito do Plano de Estabilização Orçamental imposto pela Comissão Europeia, invocando, para nos lançar areia para os olhos, a necessidade de mudar práticas e rotinas dos professores que só prejudicavam os alunos e as suas famílias. É que se o tivesse feito, não tínhamos, hoje, tantas escolas transformadas em espaços tão sem chama, quanto eficientemente ordeiras. Espaços que, hoje, permitem a adopção de soluções organizacionais e administrativas absolutamente inverosímeis que, em nome do putativo bem dos alunos, contribuem, acima de tudo, para promover o cinzentismo e a mediocridade. Escolas onde o pensar e o fazer alternativos são entendidos, cada vez mais, como benesses de directores liberais. Escolas cuja autonomia começa e acaba nos normativos e na teia de recomendações urdida pelos burocratas esclarecidos, que assim, em nome de um apoio que ninguém solicitou, controlam, ou julgam controlar, de forma insidiosa e subtil as iniciativas que as escolas lá vão assumindo.  
Ao contrário de muitos outros, não defendemos que foi com o anterior governo que começamos a trilhar o caminho errado. Há muito tempo que, como sistema educativo, havíamos perdido o rumo. O que pensamos, sim, é que tanta perturbação e tanto sofrimento foram inúteis, porque não nos conduziram a encontrar outros sentidos e outras soluções para o trabalho que, enquanto professores, realizamos. Afinal, e isto é que dói, tanta perturbação e tanto sofrimento só nos conduziram apenas e somente àquela desesperança que só contribui para o nosso desfalecimento enquanto pessoas e enquanto docentes.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

Edição N.º 187, série II
Inverno 2009

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