Página  >  Edições  >  Edição N.º 187, série II  >  Hoje devemos ter medo de existir

Hoje devemos ter medo de existir

Atentos às reflexões que o conhecido filósofo José Gil vem fazendo sobre algumas manifestações identitárias (objectivas e subjectivas) dos portugueses, detemo-nos especialmente sobre os seus livros “Portugal Hoje: o Medo de Existir” (2004) e “Em Busca da Identidade: o desnorte” (2009), destacando uma ponderação contida no segundo livro.

“A crise actual abalou já as velhas referências – e também as mais recentes – da identidade portuguesa. Vivemos actualmente três tempos diferentes (da globalização, da europeização, e o nosso tempo nacional – que, só ele, constitui uma mescla de muitas camadas do passado) e três espaços diferentes correspondentes. E eles não se encaixam nem consistem uns com os outros. Vivemos agora à deriva depois do embate destes três elementos, sem sabermos nem podermos tomar um rumo certo. Ao medo habitual em que vivíamos vem progressivamente enxertar-se a síndrome do pânico.” E noutro passo, considerando que “territorializámos” demasiado a nossa identidade, distanciados do que se passa “lá fora”, assevera, como que escatologicamente, que “ser português já não protege” e que é necessário “deixarmos de ser primeiro portugueses para poder existir primeiro como homens.”
Assim como prisioneiros duma identidade fechada ao mundo exterior, seríamos então tomados pelo “medo de existir”, tendo como escape um “chico-espertismo” que “atravessa todo o tipo de subjectividades da nossa sociedade, transversal a todas as classes, grupos, géneros, gerações”. Porque, reconheçamos, o “chico-espertismo” manifesta-se como o processo mais rápido de alcançar o topo da escala duma sociedade hedonista e competitiva, facilitando o acesso aos escalões mais apetecidos, como o poder, a fama e a riqueza, dos quais o dinheiro é o vector comum.
Ora esta endógena “subjectividade”, que não é mais nacional do que outra qualquer que se verifica “lá fora”, não produz o medo de existir. Ou só produzirá o medo de existir... em Portugal.
Por um lado, com tal medo não se geraria a flagrante e generalizada ânsia de superar as “velhas referências” do conformismo e da resignação, proscritos do quadro vigente (reificado até à saturação) dos estímulos ao risco e à competição. Aliás, a doutrina dos poderes dominantes, interiorizada pelo comum dos mortais, radica na velha máxima de que “Dos fracos não reza a história”). Só por pudor não se lhe cola a máxima latina de Plauto – “O homem é um lobo para o homem” – e se esquece, como que defensivamente, uma terceira (profundamente comprometedora) de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano julgo estranho a mim.” Coisas dos antigos...
Por outro lado, não foi por medo que os portugueses de antanho se aventuraram calcorreando ignotos mares e terras do Planeta, em nome do Poder, da Fama e da Riqueza (mas também, missionariamente, da Fé), e só por medo de existirem mal em Portugal se afoitam, hoje, em retomar os antigos caminhos da imigração, afrontando os riscos de não terem sucesso e de regressarem, em último recurso, à Pátria (para uns mãe, para outros madrasta), sempre e afinal o único lugar da Terra onde têm o direito de reclamar uma vida sem medo.
Mas bom seria, por exemplo, que, ouvindo e tomando como preocupação crucial os avisos dos especialistas das ciências da Terra, os portugueses tivessem medo de existir, no território pátrio, conscientificado o “desnorte”, este sim, da indiferença e da depredação a que o submetem em nome daquele “vector” que elegeram entre as suas ambições de poder, fama e riqueza, para poderem ser “iguais” aos de “lá fora”: o Dinheiro, rei e deus.
“Territorializando” os medos das alterações climáticas, causadoras de catástrofes que ainda só nos chegam, em notícia, de todos os continentes, e da poluição da atmosfera e dos solos com gases e lixos tóxicos, da desertificação, da desflorestação, da concentração urbana que, entre nós, é consequência tanto da fuga dos habitantes das aldeias interiores, como da desmedida “allgarvização”, “resortização” e “golfetização” de terrenos outrora produtores de alimentos básicos que ainda vamos podendo comprar no estrangeiro (até quando, ninguém pergunta) – fique-nos na mente o alerta de um infatigável ecologista, Viriato Soromenho-Marques:
Um país que devora o seu capital natural, o seu solo fértil, a sua água, a sua paisagem, a sua biodiversidade, a sua memória construída, é um país que já desistiu de continuar a ser. E, todavia, é por essa estrada mortífera que há muito enveredámos. Quem nos salvará de nós próprios?
Tenhamos, enfim, medo de existir.

Leonel Cosme


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 187, série II
Inverno 2009

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo