Sei de uma escola que ocupa um dos últimos lugares do ranking nacional. Fica situada na zona histórica de uma das mais assinaláveis cidades portuguesas. Tem à sua ilharga alguns dos mais celebrados monumentos do nosso património arquitectónico e artístico. O seu nome anda associado ao mito e ao imaginário social “de que houve nome Portugal”. E, todavia, os seus meninos e meninas “deixam-se” assinalar, hoje, por esta trágica condição que o malfadado ranking determinou: serem os “últimos” alunos de Portugal. Como se, verdadeiramente, não fossem sequer alunos. Como se, quase, esta escola perdesse a razão de existir. Porque essa é a “verdadeira” função reclamada pelo ranking – decidir quem merece e quem não merece existir. Aceitemos o desafio e façamos alguma reflexão sobre esta escola que tais alunos têm. Por onde começar? Pela escola, pelos alunos, pelos pais, pelas mães, pelas avós, pelas famílias, pelo meio, pelo poder à volta, pela apatia social, pela indiferença política, pela traição moral, pela inconsciência colectiva, pela história local? Um pouco inadvertidamente, ia começando pela história local, e talvez seja essa uma via possível para compreender o que se passa e chegar mais além. Não História com H grande, mas história dos dias comuns, do quotidiano milenar que atravessa gerações sem as mover um milímetro. História de abandono e de marginalidade social e cultural onde a escola e a formação letrada sempre foram bens dispensáveis para “aquela gente” que, afinal, vivia do seu trabalho “sem precisar da escola para nada”. O analfabetismo literal que, ainda nos nossos dias, mora em muitas daquelas casas, bastante acima do que é a média da cidade, é bem expressivo da guetização cultural a que foi condenada secularmente a população. Não é, assim, por acaso que a Escola ainda hoje é vista (e usada) mais como instituição de assistência social, de garantia de cuidados de inserção e do rendimento mínimo do que como espaço de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal e social. Afinal, esses são serviços mais urgentes e determinantes que os da aprendizagem formal propriamente dita, se tivermos em atenção o estado de carência social generalizado aí dominante. Face a este quadro, seria quase irreprimível um movimento de protesto e de denúncia contra a “insensibilidade” do ranking, se se lhe reconhecesse um último resquício de humanidade. Não é esse o caso. O ranking ocupa-se de outros cuidados... E, no entanto, é preciso que se reconheça que é a via da humanização que está em causa; que se reconheça que os meninos e meninas daquela escola, assim como todos os que estão em processo de abandono ou de insucesso são normalmente os alunos mais fragilizados, os mais susceptíveis de cair em transgressão, os mais inclinados a provocar cenas de afirmação pessoal compensatória do seu anonimato ou da sua insignificância escolar. São, evidentemente, também aqueles que mais resistências oferecem aos programas de recuperação escolar, sobretudo se são programas estigmatizantes, que os assinalem pela negativa, que suscitem compaixão ou falsa valorização. São também os mais esquivos à relação, os mais resistentes à abordagem, os mais antipáticos, “verdadeiramente insuportáveis”, como é comum chamar-lhes. Mas é um profundo erro pensar que esses alunos são insensíveis à sua própria condição de marginais escolares. Não faltam estudos que assinalam a ligação profunda entre o sofrimento desses alunos (recalcado ou mascarado de sobranceria muitas vezes) e o princípio de uma carreira de transgressão, desviância e delinquência... É aqui que tem lugar a necessidade de aprendizagem do processo de ser aluno, o que nós vimos chamando de “alunização”, que é um processo que exige tempo para aqueles que não trazem do ambiente familiar os hábitos e a cultura escolar, ou ofício do aluno. E lembremo-nos de que hoje a escolarização das nossas famílias com filhos na escola não vai além do ciclo preparatório em 70% dos casos. Ora, isso significa que a familiaridade com a cultura escolar desses adolescentes e jovens não foi oportunamente assegurada e desenvolvida em casa, pelo que os hábitos típicos da cultura escolar (organização do trabalho, disciplina pessoal, autonomia, responsabilidade) têm de ser aprendidos no contexto escolar, o que exige tempo, relações personalizadas professor/aluno, acompanhamento e envolvimento familiar, iniciação ao prazer do trabalho escolar. É absolutamente indispensável aceitar o princípio de que a aprendizagem não é possível sem antes ter criado apetências, disposições que criem o desejo de aprender. Ora, essa dinâmica do desejo supõe uma relação significativa de identificação com alguém que personifique um modelo de identidade que se deseja ser, uma relação singularizante e securizante com um/a professor/a, com um grupo, com um amigo ou amiga que faça a mediação. Este é um aspecto que está ausente da nossa reflexão sobre a Escola, da nossa reflexão sobre o abandono, o insucesso, a indisciplina, a violência, mesmo que haja profissionais e escolas que são âncoras vivas para o quotidiano dos seus alunos. Quase sempre ficamos pelas lamúrias quanto à nossa incapacidade em Português e em Matemática e não nos interrogamos sobre o que condiciona a sua aprendizagem. Antes de aprender, está o desejo de aprender. Não é quando se ignora que se aprende – é quando se deseja (Claudine Blanchard-Laville).
Manuel Matos
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