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Aprendendo a viver nas sociedades líquido-modernas

Quando Richard Sennet − em seu conhecido ensaio de 1998 sobre as conseqüências pessoais das transformações do trabalho no novo capitalismo − mostrou-nos que mais liberdade, menos rotina, burocracia e monotonia, mais flexibilidade e compromissos de curto prazo não representavam uma indiscutível melhoria nas condições da nossa existência, fomos tomados de assalto. Sennet alertou que as mudanças consideradas em seu conjunto como expressivas de um trabalho humanizado estavam deteriorando justamente aquilo que era o eixo da vida humana: as virtudes de caráter.
No livro «A corrosão do caráter», pudemos acompanhar uma sensível e lúcida argumentação sobre como lealdade, confiança, compromisso e ajuda mútua, virtudes estáveis sobre as quais se assentaria a vida, estão desaparecendo nas sociedades de consumidores do mundo globalizado orientado para e pelo mercado. Segundo a análise de Sennet, a vida moldada no novo capitalismo, focada no curto prazo, forma trabalhadores descartáveis, ágeis, receptivos a mudanças rápidas, familiarizados com inseguranças, surpresas e fracassos, crescentemente despojados de laços e compromissos.
Decorridos mais de dez anos de vigência dessa leitura de Sennet sobre a reconfiguração do trabalho e suas conseqüências, parece indiscutível, hoje, que todos nós experimentamos uma coleção de efeitos das sociedades líquido-modernas (assim nomeadas por Zygmunt Bauman) sobre múltiplas dimensões das nossas vidas. Para além do trabalho, eles abrangem dos afetos ao consumo material, passando pelo próprio sentido da existência.
Em movimentações que nos enredam, essas sociedades engendram pedagogias moldadas à sua imagem, infiltradas na tessitura da vida cotidiana, formando sujeitos cada vez mais e melhor encaixados em seus desígnios. Há um currículo cultural encarregado da “formatação” das subjetividades. Nele há enormes doses de sedução, fascínio e prazer, operando na convocação das pessoas para os novos modos de vida nas economias globalizadas do novo capitalismo. Cada vez mais, aprender a viver na modernidade líquida significa aprender a surfar nas ondas de sociedades orientadas para o consumo, tarefa ao encargo de organizações empresariais mercantis que gerenciam inclusive a cultura como recurso. Sem preocupações com a melhoria da sociedade, com o aprimoramento de práticas e instituições e com o bem comum, estão interessadas na convocação e enredamento dos sujeitos em suas teias de consumo.
Na modernidade líquida, a ordem é manter-se em movimento. Você não deve permanecer por muito tempo no mesmo emprego porque isso indica que não recebeu uma proposta melhor, demonstração de fracasso nos rankings. Não é conveniente conservar o mesmo carro por alguns anos, pois corre-se o risco de que sua desvalorização como “ultrapassado” atinja tal patamar que não seja possível jamais comprar outro melhor. A mesma lógica vale para coisas materiais e imateriais. É preciso manter o ritmo de acordo com as ondas, quer dizer, trocar de guarda-roupa, de parceiros, de computador e telemóvel, renovar a decoração, a imagem, as amizades e os amores. Além de ser destituída como virtude, a durabilidade transmutou-se em pesadelo.
Nos estudos que temos realizado [Costa, 2009] sobre a presença da cultura pós-moderna nas escolas, observamos que crianças que as freqüentam hoje vivem a infância e constituem-se como sujeitos em acentuada consonância com as configurações culturais do mundo contemporâneo apontadas por sociólogos como Bauman, Sennet e tantos outros. Ambivalência, efemeridade, descarte, individualismo, instantaneidade, instabilidade, provisoriedade inscrevem-se indelevelmente na materialidade das experiências de suas vidas. Elas crescem buscando infatigavelmente fazer parte da cultura global, desejando integrar a comunidade de consumidores de artefatos em voga no momento. São inquietas, incansáveis, mutantes. Renovação constante dos objetos de desejo, junto com alimentos instantâneos, brinquedos descartáveis e jogos hipervelozes, são apenas algumas das incontáveis práticas que exercitam-nas diuturnamente. Aprende-se rápido que descartar, assim como esquecer, são fundamentais para prosseguir surfando nas novidades emergentes. E a metáfora do surf, aqui, deve ser tomada literalmente: quer dizer, implica o domínio de habilidades muito complexas e difíceis. Crianças e jovens com “potência” de consumidores globais desenvolvem em seu dia-a-dia a “prontidão para o consumo”. O aprendizado de qualquer tipo não implica mais armazenar conhecimentos, mas desfazer-se deles e acompanhar as novidades incansavelmente. A modernidade líquida está forjando pessoas para uma vida líquida. E se não fosse assim, como se manteria florescente o mercado? É conveniente observar com atenção este fenômeno de educação contemporâneo ­− as sociedades orientadas pelo e para o consumo operam a todo vapor para modelar seres à sua imagem e conveniência.

Marisa Vorraber Costa


  
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Edição:

Edição N.º 187, série II
Inverno 2009

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