João Barroso é Professor Catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, onde desempenha actualmente o cargo de presidente do conselho directivo desta instituição. É actualmente presidente do conselho directivo da FPCEUL. Por solicitação do Ministério da Educação realizou o estudo “Autonomia e Gestão das Escolas” (1987), e coordenou, entre 1999-2002, o estudo “Reforço da autonomia dos estabelecimentos dos ensinos pré-escolar, básicos e secundário”. Foi coordenador e responsável científico pelo programa de avaliação do modelo de gestão instituído pelo Decreto-Lei 115-A/98. No ano passado, redigiu um parecer sobre o actual Regime de autonomia, administração e gestão das escolas. É dele que damos conta nesta entrevista.
No parecer que elaborou questiona, antes de mais, o sentido e a oportunidade desta iniciativa legislativa. Pode comentar?
Começando pela oportunidade, diria que uma iniciativa legislativa desta natureza poderia ser feita de duas maneiras: ou fazendo uma revisão do anterior diploma – o 115/A - 98 – na perspectiva de melhorar e de operacionalizar determinados aspectos da legislação, ou através de diplomas regulamentares, como tem sido feito. Se o objectivo era marcar uma ruptura com a legislação anterior, então a única forma era criar um outro diploma. Essa foi a opção que o Governo tomou e é nessa perspectiva que ela deverá ser lida. Isto significa, portanto, que houve a vontade expressa do ponto de vista político de assumir uma posição de ruptura com o diploma anterior, que era considerado insuficiente ou continha deficiências que prejudicavam a sua operacionalização. Na minha opinião, houve um sentido político superior à simples alteração do regime de gestão em vigor.
Na análise que faz dos respectivos conteúdos inicia o seu comentário pelo Conselho Geral, referindo não se perceber a vantagem, pelo menos de um ponto de vista de clareza conceptual, de substituir a Assembleia pelo Conselho Geral...
Eu sou francamente favorável à existência de um órgão de participação comunitária na gestão das escolas, posição que venho defendendo desde há bastante tempo. Mas o que está aqui em causa não é a existência ou não de um órgão de participação comunitária, mas sim a substituição de uma designação – Assembleia, que tem, aliás, uma tradição em Portugal e que remete claramente para os órgãos de participação, pela de Conselho Geral - que é importada sobretudo do mundo da gestão empresarial e que, no caso presente, era importada da designação que foi utilizada para o regime jurídico do ensino superior. Do ponto de vista semântico há claramente a vontade de assumir uma designação que remete mais para o universo da gestão empresarial do que para o universo político da participação comunitária. Quanto à composição do Conselho Geral, na altura em que elaborei o parecer, no início de 2008, a questão mais polémica era a obrigatoriedade de a presidência ser necessariamente exterior à escola.
Impedindo que um professor pudesse ocupar esse cargo...
Sim, mas isso foi revisto no diploma final. E ainda bem, já que essa medida - também ela importada do regime jurídico do ensino superior, onde o Conselho Geral é obrigatoriamente presidido por uma entidade externa – não faz sentido no contexto das escolas secundárias e dos agrupamentos, que são unidades de carácter comunitário em que a presença do poder e do saber dos professores é extremamente importante.
No que se refere à figura e à natureza do cargo de director, diz que a existência de um órgão de gestão unipessoal ou colegial não é, em si mesma, uma questão fundamental para a garantia da democraticidade, para a qualidade e para a eficácia do exercício das funções...
Sim, nesse aspecto não tenho uma visão maniqueísta. Acho que há situações onde pode ser importante a influência da gestão unipessoal, inclusivamente em órgãos colegiais, e noutros casos onde isso pode ser claramente um convite a uma gestão autoritária e prepotente. Continuo, por isso, a defender a possibilidade que estava contemplada no 115/A-98 de as escolas optarem por uma ou outra modalidade, assumindo claramente a responsabilidade dessas escolhas. É verdade que no anterior diploma essa possibilidade existia e praticamente nenhuma escola optou por ela, mas isso não permite fazer uma leitura simplista de que as escolas querem, pelas boas razões, a gestão colegial. Sabemos que em muitas escolas o facto de não se optar por uma gestão unipessoal pode ser entendida como uma questão corporativa e de defesa de interesses, noutros casos não. Considero, assim que, embora fosse necessário exigir alguns critérios de fundamentação, deveria ser dada a possibilidade de escolha às escolas.
Relativamente à eleição do director, critica o procedimento concursal prévio à eleição e diz mesmo que “além das dúvidas que podem ser levantadas quanto à legalidade de tal procedimento”, ele determina uma “perversa zona de ambiguidade e um constrangimento absurdo”. Pode comentar?
Eu tive oportunidade de fazer um estudo de avaliação sobre a aplicação do decreto 172/91, que previa, aliás, uma solução muito próxima dessa. No debate parlamentar realizado na altura, os deputados do Partido Socialista denunciaram essa ambiguidade e opuseram-se a ela, mas o diploma actual veio recuperar mais ou menos a mesma fórmula – que sofre dos mesmos defeitos que apontava no meu estudo, isto é, de ser uma solução híbrida: não sendo possível acabar com a eleição, pelo menos pretende-se condicioná-la. Por um lado cria-se a lógica do concurso, que é de alguma forma “cego” às diferenças de ajustamento entre a pessoa e o lugar, e por outro lado quer-se manter a escolha política que é feita pelos membros de um órgão colegial. Há aqui, portanto, uma certa ambiguidade, uma legitimação contraditória. Por isso pergunto-me por que razão se opta por um sistema tão complicado, a não ser que, evidentemente se queira condicionar a decisão final do voto livre dos membros do conselho. Contudo, apesar da ambiguidade, e em última análise, nada deve impedir esta leitura, que é a correcta, de que cada membro do Conselho possa decidir em plena liberdade.
Outros dos pontos que analisa dizem respeito à composição e à presidência do Conselho Pedagógico e aos contratos de autonomia. Relativamente à primeira questão refere que não faz qualquer sentido que ele integre, por exemplo, o representante dos pais e encarregados de educação, principalmente tendo em conta a existência deste Conselho Geral...
Desde sempre achei que a grande vantagem do Conselho Pedagógico era assumir-se como um órgão técnico-profissional. Nesse sentido teria de ser constituído por professores, e nomeadamente por professores que desempenhassem funções de coordenação e de supervisão na escola, fossem membros de equipas pedagógicas, etc. A entrada dos pais e do pessoal não docente para os conselhos pedagógicos foi implementada para tentar colmatar uma insuficiência da legislação de 1976, que não previa qualquer lugar para a participação dos pais. Esse “remendo” acabou por ficar como uma conquista das associações de pais e dos encarregados de educação, Na minha opinião, porém, seria muito mais vantajoso clarificar que o lugar de participação dos pais é na Assembleia da Escola ou no Conselho Geral e que o Conselho Pedagógico deveria ser entendido como um órgão técnico-profissional com competências estritas nesse domínio.
No que se refere aos contratos de autonomia, refere que a solução adoptada põe em evidência o carácter evasivo da própria definição de autonomia. Quer comentar?
Os contratos de autonomia foram sempre uma pedra no sapato do ministério, desde Marçal Grilo, porque eles pressupõem que haja uma reestruturação prévia da relação entre a administração central e a escola que nunca chegou a ter lugar. Um contrato de autonomia que se celebra no âmbito de uma administração burocrática, centralizada e autoritária é um absurdo. Na altura de David Justino, a realização dos contratos transformou-se numa questão política, em fim de mandato, e no contexto conhecido da Escola da Ponte. Com a actual Ministra procedeu-se à assinatura dos primeiros 22 contratos mas com um elemento novo que à partida não estava previsto – o de aparecerem claramente articulados com o processo de avaliação das escolas, em curso. Desse ponto de vista o contrato deixa de ser um instrumento para a definição de autonomia e passa a ser, sobretudo, um instrumento para a avaliação das escolas. Além disso, a experiência tem mostrado que as escolas “ganharam” pouco com os contratos e eles acabaram por, na prática, consagrar aquilo que já existia de uma maneira não tão assumida mas mais clandestina. Onze anos depois de terem sido consagrados (Decreto-Lei 115-A/98) o que foi feito é praticamente nada.
Refere no seu parecer, aliás, que a atenção dada às questões da gestão reforça precisamente o sentido de que os problemas relacionados com a autonomia resultam da deficiência do modelo de gestão, o que, afirma no documento, não corresponde à verdade...
Sim, a questão da autonomia aparece aqui para “embrulhar” aquilo que é o objectivo central deste diploma, que é o controlo da gestão. E, desse ponto de vista, o diploma está feito exactamente para blindar qualquer veleidade de autonomia que as escolas possam ter a esse nível. A autonomia é, no fundo, a roupagem que permite tornar esta discussão mais atractiva e a proposta legislativa mais persuasiva.
O que mostram as experiências em outros países?
É preciso dissociar a questão da autonomia das escolas da gestão escolar. No que diz respeito à autonomia, este é um tema chave nas políticas educativas europeias e transversal quer ao espaço europeu quer ao espaço extra-europeu, tendo-se transformado, desde há uns dez anos, numa espécie de solução “pronto a vestir” para os problemas da escola. Claro que em torno deste aparente consenso existem lógicas completamente diferentes, porque há quem defenda uma autonomia da escola como primeiro passo para a sua privatização e para a criação de mercados educativos, mas também os que defendem a autonomia como uma prática democrática e como um valor que permite que a democracia seja posta em prática nas escolas. A autonomia não é um fim, mas um meio. Por isso ela deve ser definida em termos políticos e não como uma simples modernização da gestão.
E no que se refere à gestão?
A questão da gestão é diferente porque as políticas são muito condicionadas pela história da administração da educação em cada país. Em Portugal, a discussão sobre a gestão não se pode fazer nos mesmos termos do que em França, em Inglaterra, na Alemanha ou na Suécia. Porque temos uma história própria nesse capítulo. Neste sentido, a política de gestão que se adopta hoje não pode fazer tábua rasa da evolução da história da escola portuguesa, em particular desde 1974. Uma história totalmente original e excêntrica relativamente àquilo que era a prática corrente nos restantes países europeus. É preciso encontrar uma solução neste contexto.
Mas pode-se, de algum modo, antecipar as consequências desta legislação para aquilo que poderíamos designar como a actual matriz da escola pública?
Eu não acho que seja um decreto-lei que irá fazer diferença. Aliás, estou a terminar um estudo que percorre a legislação escolar desde 1986 até agora, e chega-se à conclusão de que os decretos-lei passam, as escolas ficam e acabam por se adaptar à legislação de maneira diversa. Não é, portanto, um decreto-lei que irá mudar a realidade. Há muitas outros aspectos para além desta legislação que estão a mudar a realidade. A questão da gestão não se resume ao decreto 75/2008. As questões ligadas à avaliação do desempenho de professores, por exemplo, são capazes de ter mais implicações naquilo que é, na prática, a gestão escolar do que esta legislação.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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