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A memória como léxico dos tempos

Libertar as crianças da infância - reconhecendo a criança no que ela é, agora, não no que ela pode tornar-se implica em trabalhar conceitualmente com uma percepção que não inferiorize suas lógicas e em perceber os seus trajectos de vida.

Ao problematizar a política de recognição da escola, investimos na invenção de outras práticas e políticas que não reduzam a aprendizagem a seus resultados e ampliem as operações cognitivas: a cognição como invenção aberta às experiências  não-recognitivas e ao devir.
Na tentativa de superar a tendência recognitiva da escola problematizamos a memória como prática cognitiva – renovação que na perspectiva da invenção nos conduziu a produzir, com as crianças, uma outra narrativa: narração que emerge dos cacos de uma cultura escolar estilhaçada, fundada na transmissão do inenarrável.
Narrativas de uma memória viva, memória traumática de experiências de choque, o fracasso na escola, como as lágrimas de Sammy Davis, que expressaram seu desespero diante de um quadro cheio de letras e palavras desconhecidas para ele - apesar de estar no quarto ano de escolaridade.
Na escola reinventada testemunhamos(1) cotidianamente narrativas de um sofrimento indizível, que se expressa no corpo e nas atitudes das crianças: Alexandre, sempre calmo e bem humorado, se mostra nervoso e agitado, até que um punhal é encontrado em sua mochila – “é para me defender daquele menino do tráfego...” –, Milena, falante e irrequieta, que torna-se amuada e febril, até que se descobre que estava com uma infecção causada por piolhos.
Testemunhamos ainda, como a escola absorve as relações sociais desiguais e legitima como dificuldades de aprendizagem as injustiças cognitivas, que produzem narrativas de um sofrimento indizível e anônimo: sofrimento inominável daqueles que não têm nome, que passam pela escola e não deixam rastro, ou melhor, o seu rastro foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste. Crianças que passam pela escola e nela desaparecem. Crianças que ninguém lembra o nome, mais um dado nas estatísticas dos analfabetos escolarizados.
O trabalho de memória reinventa a cognição e incorpora a multiplicidade cotidiana de tempos à aprendizagem escolar. Aión é a temporalidade da criança, um tempo da intensidade, do acontecimento e é um entendimento necessário para se compreender o que a escola tem feito com o tempo da criança - a compartimentalização do saber e do fazer não é bem recebida pelas crianças. O que se observa é a escolarização do tempo da infância.  O tempo na/da escola é o tempo de Krónos - a continuidade de um tempo sucessivo, que captura a infância como um tempo de vir a ser.
Romper com a idéia da falta implica em reconhecer a criança no que ela é, agora, não no que ela pode tornar-se. As crianças na escola vivem cotidianamente o embate entre o tempo da escola (Krónos) e o tempo da infância (Aión).  Tal embate resulta no desejo de fugir da infância - em nossa pesquisa muitas crianças se definem como quase adolescentes. É claro que muito já se discutiu sobre o fim da infância, porém são poucas as falas das crianças, sobre sua própria condição. Talvez seja preciso libertar as crianças da infância!
Libertar as crianças da infância implica em trabalhar conceitualmente com uma percepção que não inferiorize suas lógicas. A infantilização faz das crianças prisioneiras da condição do não ser, pois só existem em função do que poderão tornar-se: “Não apenas os prisioneiros são tratados como crianças, mas as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma infantilização que não é delas” (FOUCAULT e DELEUZE, 2003:41).
Libertar as crianças da infância é também lutar por justiça cognitiva, o que implica na tentativa de perceber seus trajetos pela vida: crianças que catam lixo para sobreviver e que na escola são tratadas como lixo, trapeiros-poetas, no dizer de Benjamim(2). Crianças-narradoras e sucateiras que fraturam o discurso da hospitalidade hostil(3) da escola e tecem suas narrativas nas franjas da narrativa e da história oficial - restos de fios deixados de lado como algo que não tem significação, importância ou sentido: suas experiências, suas hipóteses de vida, seus desejos, sonhos, afetos e saberes.  

Notas

1 -  Tomamos o termo testemunha  no sentido benjaminiano, ou seja, testemunha não é somente aquele que viu com seus próprios olhos, o "histor" de Heródoto, o testemunha direto. Testemunha é aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezam a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.

2 - Para Benjamim o narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpenproletário, do catador de sucata e de lixo, personagem das grandes cidades, que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder, de não deixar nada ser esquecido. Figura-estandarte da miséria humana, recolhendo tudo aquilo que a sociedade rejeita. Do nosso ponto de vista a criança narradora se identifica com o trapeiro e o poeta, que colecionam sobras, cacos, fragmentos ou destroços e os renovam e ressignificam (re)inventando a experiência do mundo. Walter Benjamin.

3 - Skliar situa a questão da  HOSPITALIDADE HOSTIL, a partir da dualidade da hospitalidade da qual nos fala Derrida (2001), ou seja, toda hospitalidade é, necessariamente colonial, necessariamente hostil. Esta hospitalidade [hostil]  testemunhamos cotidianamente na escola que tanto “oferece” e impõe às crianças um horário de refeição [como almoçar às 09:40 min da manhã] independe de seu apetite, quanto impõe um conhecimento [a escrita por exemplo], independente de seu desejo por aprender.

Carmen Lúcia Vidal Pérez
Luciana Pires Alves


  
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

Carmen Lúcia Vidal Pérez
Univ. Federeal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Luciana Alves
GRUPALFA - Grupo de pesquisa em alfabetização das classes populares. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro
Carmen Lúcia Vidal Pérez
Univ. Federeal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Luciana Alves
GRUPALFA - Grupo de pesquisa em alfabetização das classes populares. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro

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