Li, como toda a gente, O nome da rosa de Umberto Eco. A história passa-se na Idade Média e o autor conta-nos como um monge de nome Guilherme de Baskerville, acompanhado do jovem Adso (que só depois de velho narra o que viu) quer descobrir uma morte estranha, numa abadia do norte da Itália. – morte que é a primeira de uma série de sete, que Baskerville interrompe ao desmascarar o culpado. No centro da abadia, levanta-se uma enorme biblioteca, considerada a mais importante e completa de toda a cristandade. Durante a investigação, Guilherme de Baskerville encontra-se em concorrência com a Inquisição e com o seu incontornável representante Bernard Gui, o qual defende que os hereges são os homicidas que Guilherme procura, designadamente os seguidores de Dolcino, o criador de uma seita hostil ao papado. Consegue, através de horrendas torturas, arrancar confissões, favoráveis à sua tese, a vários monges. Mas não convence Baskerville. Este a conclusão a que chega é bem diversa: conclui que as mortes não são obra de hereges e que os monges morrem, ao tentarem ler um livro misterioso, ciosamente guardado na biblioteca. A cena final do livro põe frente a frente Baskerville e o assassino, um cego que era um dos monges mais velhos da abadia. Desmascarado, o assassino faculta ao investigador o livro que já havia provocado sete mortes. Tratava-se do segundo volume da Poética de Aristóteles (384-322 a. C.), uma obra desconhecida até então e na qual o Estagirita faz uma profunda reflexão, chegando mesmo a abordar a questão do riso. Acusado por Baskerville, Jorge, o assassino, tem um comportamento estranho e, em vez de esconder o livro, aconselha ao investigador a sua leitura. Baskerville começa a leitura do livro, mas muniu-se de um par de luvas, pois que descobriu que as páginas do livro se encontravam envenenadas, com um líquido que nelas deitara o monge criminoso. E não escondeu a questão seguinte: por que pretendia ele matar os monges que lessem a Poética de Aristóteles? Porque o livro falava do riso e o riso é o contrário da fé. Pergunta-lhe Guilherme: Mas quais são os efeitos perniciosos do riso?... Responde Jorge: “O riso é a fraqueza, a corrupção, o amolecimento da nossa carne. É a diversão para o camponês, a licença para o alcoólico e até a Igreja instituiu o Carnaval, espaço de muitos crimes e vícios. Portanto, o riso não passa de uma coisa vil (...)”. Mas Baskerville queria saber mais: Se há tantos livros que falam do riso, da alegria. Por que só este lhe inspirava tamanho terror? Declara o criminoso: “Porque era do Filósofo (Aristóteles). Cada um dos livros desse homem destruiu uma parte da ciência que a cristandade tinha acumulado, ao longo de séculos. Os primeiros Padres transmitiram-nos o que era preciso saber sobre o poder do Verbo e bastou que Boécio comentasse o Filósofo para que o mistério do Verbo divino pudesse ser questionado e parodiado. O livro do Génesis diz-nos o que é preciso saber sobre a composição do cosmos e bastou a Física do Filósofo para tudo o que nos foi ensinado fosse repensado. Cada palavra do Filósofo, em que (pasma bem!) há bispos e papas que acreditam, é um perigo para a cristandade”. Jorge faz do livro de Aristóteles o pretexto das suas angústias, diante dos problemas da Igreja. Baskerville, ao invés, não teme o riso, nem a crítica, pois que chega mesmo a pensar num cristianismo sem as taras em que o Vaticano é pródigo. Como se vê, o riso, o anedotário, a mordacidade intencional dos dissidentes, dos críticos, dos resistentes, dos heréticos, que se opõem a qualquer cartilha ortodoxa, é considerado um perigo, pelos dogmáticos, pelos conservadores, pelas instituições envelhecidas . Há muitos séculos, como hoje. A lição emancipadora de José Paulo Serralheiro tem mais a ver com os “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud), figuras do século XIX (embora seja em 1939 o passamento de Freud) do que com grande parte da doutrina enrugada e aposentada do capitalismo que nos governa. O desrespeito pelos professores e afinal por quem trabalha, uma corrupção sem freios, o desemprego, uma política de... inverdade – tudo isto que nos chega com a impressão dolorosa de um pensamento imobilizado no passado (e em interesses inconfessáveis) e conservando-se irredutível na sua solidão, tudo isto dá para soltar uma gargalhada crítica e sadia. Como José Paulo Serralheiro o fazia, ele, um “homem de virtude”, expressão tão grata à antiguidade clássica e tantas vezes repetida, junto da loba de bronze, pelos tribunos da velha Roma. A integridade de carácter, a envergadura moral, a fidelidade a princípios e a si mesmo (para além de uma informação exaustiva) de José Paulo Serralheiro dão-me ensejo para me associar ao pesar de todos os que prestam o seu respeitoso preito à memória de um cidadão sem mácula, modelo das mais altas virtudes cívicas e políticas.
Manuel Sérgio
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