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Entre idades e mundos culturais

Cada criança constrói, reconstrói, a seu modo, no jogo, na aprendizagem, na interacção, uma nova dimensão: um terceiro. Não se trata de copiar, de imitar, apenas. Há uma dimensão da autoaprendizagem; da autoformação.

De novo à escrita neste grande projecto que José Paulo Serralheiro prossegue com afinco. Novo título, agora! Novas ideias? Algumas. Essencialmente algumas interrogações.
Pretendo usar este espaço com regularidade – (trans)formações – conjuntamente com colegas do CIID – Centro de Investigação Identidades e Diversidades - e de outros centros com quem temos contactos e investigação em comum.
O título recobre a ideia da mudança, da dinâmica social e cultural do mundo contemporâneo, da formação como transformação, dos vários tipos de formações, desde a auto, hetero e eco – formação (Pineau, 1983) das metamorfoses das identidades, etc..
O tema geral permite cruzar as áreas fundamentais desta revista: educação, sociedade, culturas, actores e sujeitos.
Cada criança constrói, reconstrói, a seu modo, no jogo, na aprendizagem, na interacção, uma nova dimensão: um terceiro (Serres, 1993; Vieira, 2006). Não se trata de copiar, de imitar, apenas. Há uma dimensão da autoaprendizagem; da autoformação. Não se trata, de facto, de psicologia behaviorista, comportamentalista, do clássico estímulo-resposta.
Como diz Filipe Reis, “entre o que os adultos dizem e o que as crianças aprendem, medeia a prática, especialmente numa sociedade cuja lógica é resultado de experimentar directamente no real. Só que a prática da criança é altamente simbólica e o mundo no qual vive é feito de representações elaboradas no desenvolvimento do seu entendimento. É isso que significa o jogo infantil como processo de aprendizagem. É a introdução do real dentro do mundo da criança que ainda o entende através dos seus próprios conceitos, o que faz do jogo um processo pedagógico.” (Reis, 1991: 27).
A infância é um “Entre Lugar” (1994). A criança vive entre mundos culturais diversos. Mas, modelarmente, pensemo-la, agora, entre dois mundos, apenas.
Por um lado, temos a criança como é considerada pelos adultos; por outro, temos o que é inventado por ela. Relativamente aos adultos, estamos perante a norma axiológica, gnoseológica; no tocante às crianças, estamos perante um novo mundo construído por elas mesmo (Ferreira, 2004; Iturra, 2002; Nunes, 1999; Sarmento, 2004):
E quando o avô brinca com os netos é um adulto, um idoso ou uma criança que brinca? Um ser que passou a ter tempo, de novo, para brincar? E como é que os outros, as crianças, vêem os que designamos de adultos e que às vezes brincam com elas? (Vieira, 1996)
Vale a pena lembrar um artigo de Teresa Vasconcelos que descreve a interacção feita com a Tina, uma menina negra de 4 anos, em contexto de etnografia numa sala de educação pré-escolar, em que a miúda ordena à etnógrafa que vive a situação de jogo com ela, que se sentasse porque ainda não tinha comido: “ao ordenar senta-te!, a Tina convidou-me a tomar parte do seu jogo, mas deu uma mensagem clara de que era ela que estava a orientar a situação. Eu não podia limitar-me a «passar»… Não havia também forma, como etnógrafa, de deixar de me tornar vulnerável, de me esconder para não ser vista. […] A Tina continuava a controlar a situação quando questionou o facto de eu tentar sair sem comer as suas panquecas. Ao perguntar aonde pensas tu que vais? Ela estava implicitamente a falar das relações de poder no seu jogo. […] Devo confessar o meu embaraço quando a Tina referiu que estava pronta a sair da «sua casa» - do seu jogo, da sua «representação secreta» - sem ter comido as panquecas cuidadosamente preparadas por ela. Quando comemos uma refeição na casa de alguém, não partilhamos a sua intimidade? […]” (Vasconcelos, 1996: 26 e 27).

Referências Bibliográficas

  • AUGÉ, Marc (1994). Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, Venda Nova: Bertrand Editora.
  • FERREIRA, Manuela (2004). “Do Avesso do Brincar ou… as Relações entre Pares, as Rotinas da Cultura Infantil e a Construção da(s) Ordem(ens) Social(ais) Instituinte(s) das Crianças no Jardim-de-Infância” in Crianças e Miúdos Perspectivas Sociopedagógicas da Infância e Educação, Lisboa: Edições Asa.
  • ITURRA, Raul & REIS, Filipe (1990). O Jogo Infantil numa aldeia Portuguesa, Guarda: Edição de Associação de jogos tradicionais da Guarda.
  • ITURRA, Raul (1997). O Imaginário das Crianças, Lisboa: Fim de Século.
  • ITURRA, Raul (2002). “A epistemologia da infância: ensaio de antropologia da educação”, in Educação, Sociedade e Culturas, n.º 17, Porto: Afrontamento, (pp. 135-153).
  • NUNES, Angela (1999). "Brincando de ser criança..." in Por uma Antropologia da Criança: A Sociedade das Crianças A 'UWE-XA VANTE, Ministério da Educação (pp. 155-209).
  • PINEAU, G. (1983). Produire sa Vie: Autoformation et Autobiographie, Montréal: Ediligo.
  • SARMENTO, Manuel Jacinto (2004). “As Culturas de Infância nas Encruzilhadas da Segunda Modernidade” in Crianças e Miúdos Perspectivas Sociopedagógicas da Infância e Educação, Lisboa: Edições Asa.
  • SERRES, Michel (1993 ). O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget.
  • VASCONCELOS, Teresa (1996). “Onde pensas tu que vais? Senta-te! Etnografia como Experiência Transformadora” in Educação Sociedade e Culturas, nº 6, Porto: Afrontamento, (pp. 23-46).
  • VIEIRA, R. (2006). Identidades Pessoais: interacções, campos de possibilidade e metamorfoses culturais, Lição da Agregação em Antropologia da Educação, Lisboa: ISCTE.
  • VIEIRA, Ricardo (1996). "Da Infância à Adultez: O Reconhecimento da Diversidade e a Aprendizagem da Interculturalidade" in ITURRA, Raul (Org.), O Saber das Crianças, Setúbal: ICE.

Ricardo Vieira


  
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Edição:

Edição N.º 185, série II
Verão 2009

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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