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Chuva de verão?

Importa pensar a abundância dos artefatos tecnológicos nas cenas da educação actual. Não descurar a construção colectiva, no interior da escola, da sua utilização. É que chuvas de Verão são tão intensas quanto rápidas. Será o caso das chuvas de meios tecnológicos nas escolas?

Tinha um notebook no meio do caminho. Era um modelo recente, equipado com bateria para horas de uso, em qualquer lugar do planeta. Com DVD: nitidez de som e imagem. O objeto mais multimídia disponível no mercado, pelo menos até aquela data. A professora, proprietária, nem queria pensar em quanto tempo ele se tornaria obsoleto. Poderia ser antes mesmo da última prestação, mas não fazia o menor sentido pensar nisso justo naquele momento, com todos os olhares cravados na tela de matriz ativa, enquanto o clique-clique do mouse embutido ia velozmente abrindo e fechando janelas, mostrando-escondendo coisas, as mais variadas.
Que tesouros estariam escondidos lá? Só os apocalípticos pensariam nele como uma nova versão da caixa de Pandora. Por outro lado, como pensar nos que pensariam nele como o depositário das respostas para todas as perguntas? Mas, afinal, por que pensar nisso em meio a tanto encantamento e à impressão de infinitas possibilidades?  Ele, o objeto, ali, aberto, ágil e disponível. Pronto para ser usado por aqueles sujeitos.
Os dois parágrafos acima estão às páginas 76-77 do livro Formação de professores, tecnologias e linguagens, que publiquei em 2002 pela Loyola. A imagem das pessoas se movimentando em torno do notebook parecia importante, na medida em que materializava a centralidade daquele artefato luxuoso, muitíssimo mais caro do que um computador de mesa, objeto de desejo também por ser portátil. Era um notebook com pessoas em volta.
Em 2009, notebooks (ou laptops) perderam a condição de artigos de luxo, não só porque seu preço baixou consideravelmente, mas porque, além de já terem sido distribuídos aos professores do Estado do Rio de Janeiro, há o projeto UCA (Um Computador por Aluno), em fase de finalização pelo MEC. A situação mudou tanto que a imagem não parece caber mais em qualquer cena que pretenda representar a incorporação educacional do artefato.
Uma imagem desta mudança foi apresentada no Caderno INFOetc, de O Globo (10/05/2008), sob o título: “Chuva de laptops”. Nela, um professor lança mão de guarda-chuva para se proteger. A imagem do professor é a mais estereotipada possível: meia-idade, óculos, livros bem grossos e de capa dura debaixo do braço. Sua fisionomia tensa sugere medo: será que ele e os seus livros serão atingidos pela chuva de laptops?    
Em todas as telas dos laptops que sobre ele despencam, há apenas um enorme ponto de interrogação. O que será que cai sobre ele? Diante do não-saber, o instinto da sobrevivência? Afinal, os objetos são pesados e podem matar. Como a queda deles será amortecida pelo sujeito, são os objetos que podem sair ilesos. Melhor se proteger? Nem dá para saber como o professor os vê, no seu movimento de busca pela sobrevivência. Mais um ponto de interrogação.
Quero fazer desta imagem um convite para pensar a abundância dos artefatos tecnológicos nas cenas da educação atual. Depois de muito se falar da sua falta, agora o tema precisa ser aquele ponto de interrogação nas telas. O que parece continuar faltando é o encaminhamento das perguntas relativas à sua apropriação educacional. Notebooks, e aí? Pois é, pra quê? Na ausência de projetos produzidos coletivamente, sustentados por reflexões acerca das práticas concretas, o receio é o do preenchimento das lacunas por manuais de instrução com pretensas respostas para todas as questões. O medo, mesmo, é o de que a próxima chuva seja de manuais, na sucessão de verões marcados por estratégias de substituição tecnológica: os artefatos posicionados no lugar dos sujeitos...
Para tentar impedir este achatamento do trabalho docente, só mesmo produzindo e socializando alternativas construídas na escola para que os artefatos instaurem mudanças significativas no processo de ensinar-aprender.
Chuvas de verão em geral são tão intensas quanto rápidas. Será o caso?

Raquel Goulart Barreto


  
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Edição:

Edição N.º 185, série II
Verão 2009

Autoria:

Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ
Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ

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