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Sobre a noção de casamento em Portugal

Seria importante que no âmbito de uma universidade, pública ou privada, fosse feita e depois publicada em livro uma tese sobre a evolução da noção de casamento em Portugal. Se tal já tivesse sucedido, eu teria ido comprar esse livro e tê-lo-ia lido com cuidado antes de escrever este artigo. Mas nada encontrei nas livrarias e tenho, assim, de abordar esta matéria com os conhecimentos de um cidadão comum não especialista na matéria.
Estes conhecimentos são: Na primeira dinastia o Estado português, isto é, os reis, não decidiam as leis sobre os casamentos. Eles próprios tinham de se casar em conformidade com as leis da Igreja Católica com a qual, aliás, tiveram algumas dificuldades. Mas havia, uma outra religião minoritária, a religião judaica, e os judeus não casavam nas igrejas. Tinham o seu casamento próprio nas sinagogas, que não deixava de, como tal, ser considerado incluindo pelos próprios reis. Os judeus casados eram os judeus casados nas sinagogas.
Depois, sucederam muitas coisas. Os judeus foram expulsos, as sinagogas proibidas e os casamentos considerados válido passaram a ser unicamente os celebrados pela Igreja Católica, com a excepção dos estrangeiros casados em igrejas protestantes, que não deixavam, por isso, de ser considerados casados.
Assim chagamos ao liberalismo em que o Estado passou a legislar sobre o casamento (e sobre o divórcio) por considerar que, perante a lei, os cidadãos deviam estar todos em condições de igualdade, independentemente das suas convicções, ou não convicções religiosas. Esta orientação ficou bem definida com as leis da República. Por volta dos anos 30, muitas pessoas casavam na igreja e depois (ou antes) iam casar-se no Registo Civil para serem consideradas casadas pelo Estado. Obviamente, quem quisesse, podia casar-se só pelo Registo Civil.
Com o salazarismo, admitiu-se que os casamentos feitos nas igrejas católicas teriam também validade civil, devendo os padres transmitir o seu registo ao Registo Civil, onde os recém-casados já não precisavam de passar.
Surgiu, assim, uma situação anómala, que só veio a ser resolvida depois do 25 de Abril. A Igreja Católica não aceita o divórcio. Ao reconhecer os casamentos da Igreja Católica, o Estado português, que em princípio aceitava o divórcio, não aceitava o divórcio dos cidadãos que tivessem sido casados pela Igreja Católica.
Para resolver este problema, foi necessária uma revisão pontual da Concordata entre o Estado Português e o Vaticano, o que foi feito com bastante bom senso de ambas as partes logo a seguir ao 25 de Abril, com as negociações conduzidas pelo lado português pelo ministro Salgado Zenha.
A situação passou a ser a seguinte: quem se casar pela Igreja Católica nunca mais se pode casar pela Igreja (enquanto o cônjuge estiver vivo) mas pode divorciar-se perante o Estado português e voltar a casar civilmente.
Ao longo de todo este processo, o casamento foi sempre um contrato entre pessoas de sexos diferentes.
Nas últimas décadas, começou-se a falar em casamento de pessoas do mesmo sexo. Embora militante do PS, tenho, nesta matéria, uma posição mais próxima da Doutora Manuela Ferreira Leite do que da de alguns dirigentes da JS.
Aceitar que o casamento pode ser, também, um contrato entre pessoas do mesmo sexo, é alterar a natureza do casamento. Há, talvez, três milhões de casais que casaram numa altura em que o casamento era, inequivocamente, um contrato entre pessoas de sexos diferentes. A modificação desta situação só é legítima, a meu ver, se sancionada por referendo nacional. Os deputados têm legitimidade para propor este referendo, mas não para decidirem sobre o fundo da questão, sobretudo quando não definiram previamente a sua posição. (A disciplina de voto imposta aos deputados do PS, por exemplo, permitiu-lhes não revelarem agora o modo como pretendem votar na próxima legislatura).
Mas o mundo evolui e não deixo de reconhecer que é preciso procurar soluções para um problema que hoje divide a sociedade portuguesa.
Ouso, assim, apresentar aqui uma proposta que ponho à apreciação das gerações mais novas e de instituições já muito antigas, como é o caso das igrejas.
Esta proposta é a seguinte:
1- O Estado português deixa de legislar em todas as matérias relacionadas com os futuros casamentos e, naturalmente também, com os divórcios.
2- Em contra partida, legislará sobre o que poderemos chamar um PUC (pacto de união civil) destinado a pessoas que vivam em economia comum e comunhão de afectos:
Estes PUCs, que serão registados oficialmente, serão caracterizados por:
a) Cada pessoa só poderá participar num PUC.
b) Poderá haver PUCs com comunhão de bens e comunhão de adquiridos.
c) Os PUCs poderão ser desfeitos em qualquer altura por vontade de uma das partes. (Para evitar um uso abusivo, quem desfizer um PUC não poderá, por exemplo, integrar um novo PUC durante um ano).
d) Os PUCs beneficiarão de estatutos sociais e financeiros mais ou menos semelhantes aos dos actuais casais casados.
e) Os PUCs poderão, naturalmente, ser de pessoas do mesmo sexo, ou de sexos diferentes.
Penso que uma legislação assim, no fundo não muito diferente da existente no início da nacionalidade, é condizente com a evolução actual da sociedade. Com ela, a instituição casamento não desaparece, pelo contrário. As diferentes Igrejas, católica, protestantes, ortodoxa, muçulmana, israelita, budista, e outras, continuarão a celebrar e a valorizar os casamentos entre os seus fiéis. E os diferentes grupos da sociedade poderão, com os rituais que entenderem, celebrar casamentos entre os seus adeptos. Só que o Estado não terá nada que ver com isso.
Os pares, casados ou não, que queiram ter um estatuto reconhecido pelo Estado, só têm que se dirigir a uma repartição e registar um PUC. Para usar uma linguagem corrente: é um estatuto adequado a quem tenha "junto os trapinhos", ou viva "de cama e pucarinho".

António Brotas


  
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

António Brotas
Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico
António Brotas
Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico

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