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"Laissez-faire, laissez-passer"?

Se quisermos considerar a ciência económica como um empirismo balizado pelos avatares do mercado e da moeda (o primeiro tendo por "lei" não a equanimidade da troca, mas o maior lucro, e a segunda, tendo transferido o valor intrínseco e permanente de quando a natureza "fiduciária" lhe vinha dos metais preciosos para o "papel" e a "promessa"), não nos surpreenderão as dúvidas e as desconfianças que o "mercado" vai somando, face à diversidade dos teóricos e das soluções propostas para ultrapassar as crises.
Certo é que, na história das práticas, há sempre quem ganhe e quem perca; porque, desde que se enfatiz ou o capital (e não o trabalho) como motor do desenvolvimento, toda a troca, de bens ou serviços, é um negócio que aspira ao lucro. E ao viés do que teorizavam os clássicos do liberalismo económico (Quesnay, Turgot, Smith, Bentham, Ricardo, Stuart Mill, etc.), o mecanismo impessoal do mercado não levou à harmonia perfeita da soma dos interesses individuais, como observou o ainda muito citado John Keynes, que a partir da grande crise de 1929, desencadeada por uma quebra nas cotações dos títulos na Bolsa de Nova Iorque, não isentou o liberalíssimo "laissez-faire, laissez-passer" da intervenção do Estado para corrigir os "desvios" do sistema.
Foi graças a esta acção que o Presidente Franklin Roosevelt, em 1933, combateu a Grande Depressão, com repercussões em todo o mundo, instituindo a política da New Deal, que consistiu nomeadamente na intervenção do Estado na banca e nos créditos, na atribuição de prémios à produção, na criação da segurança social e no reajustamento entre o nível salarial e o dos preços - sem contudo resolver o magno problema do desemprego: este só foi debelado após a Segunda Guerra Mundial, por efeito da perda de vidas humanas e das necessidades de reconstrução dos países afectados. Nunca é de mais lembrar que os regimes fascistas medraram pela transformação dos desempregados em soldados e operários da indústria do armamento.
A crise de 1929 serviu, no entanto, para Keynes sustentar a teoria do pleno emprego, no pressuposto de que o Estado podia responder às quebras no consumo e na circulação monetária proporcionando trabalho aos desempregados através de obras públicas (diz-se que Péricles empregara os desempregados na construção do Pártenon...) e estimulando a inovação e o investimento com vista a uma "oferta global". Só que, como objectou um dos seus críticos (E.Grossmann), "não se imagina como pode o Estado manter uma "procura global" quando o estrangeiro não quiser comprar mais os nossos relógios, máquinas, bordados, etc., ou achar muito caros os nossos hotéis".
Hoje, deve acrescentar-se: ou quando o estrangeiro, tendo atingido níveis de tecnologia e produtividade competitivas, se tornar auto-suficiente e até excedentário na sua produção e se tornar ele próprio fornecedor do mercado mundial, provocando uma alteração da procura global pela sua intrusão nos mercados nacionais. Foi também para se defender destas "ameaças" que Roosevelt introduziu na New Deal uma disposição proteccionista: vender o máximo, comprar o mínimo ? privilégio ausente dos países menos desenvolvidos, que, para sobreviverem em acordo com os padrões civilizacionais induzidos, precisam de comprar ao estrangeiro o que não podem ou não querem produzir em casa ? incluindo os alimentos essenciais.
Ora é no tipo de respostas que são dadas àqueles padrões, quando demasiado altos, que residem muitas causas das graves depressões económicas, logo manifestadas no desemprego e consequentemente na contracção do consumo. Isto acontece sobretudo nos países que se consideram ricos, porque o são de facto ou porque aspiram a viver como se o fossem. Induzidos e mentalizados pela estratégia capitalista da expansão contínua da oferta, que vai do necessário ao excesso e do supérfluo ao desperdício (a publicidade é o grande instrumento do mercado, incluindo os produtos "tóxicos"), pobres e ricos são igualmente vulneráveis aproveitadores do "crédito amigo" ou do "dinheiro fácil". Na verdade, não é fácil distinguir o que tem a garantia da supervisão do Tesouro nacional do que lhes é oferecido como um maná. Em Portugal, demorou alguns anos a descobrir que o maná oferecido pelo Banco Angola e Metrópole, no começo do século passado, provinha de notas "verdadeiras" mandadas imprimir na tipografia autorizada de Inglaterra, mas à revelia do Banco de Portugal, por um inteligentíssimo vigarista chamado Alves dos Reis, que morreu, em 1925, cumprindo vinte anos de prisão... O que se viu, nos Estados Unidos, com a recente crise imobiliária, depois financeira e por último económica, foi outra espécie de maná malsão cujos efeitos também escaparam aos "experts" da ciência económica, que recostados nas benesses das práticas consentidas ou comportando-se como bombeiros distraídos nos seus quartéis, esqueceram-se de 1929 e de que os "incêndios" económicos tinham muitas variáveis, como se verificou com o "crash" de 1987.
Pois outro "incêndio", parecido com o do "subprime", foi há uma dúzia de anos prenunciado num livro imprescindível, que não poderá ser ignorado, do reputado sociólogo francês, falecido em 2002, Pierre Bourdieu, "As Estruturas Sociais da Economia" (Campo das Letras, 2006). Nele é focada a expansão ilusória do imobiliário, na França dos anos 70/80, e como banqueiros e promotores exploraram o simbolismo da "casa própria" (unidade familiar, valor patrimonial, integração comunitária, estatuto social).
Surpreendidos, contudo, os "especialistas" defendem-se agora todos concordantes em que ao Estado "cumpre" ser o bombeiro vigilante e competente para apagar os incêndios... enquanto os incendiários se refazem das catástrofes alegando que o Capital se auto-regulará face aos descuidos e erros cometidos - senão, criminosamente, consentidos.
Faltará aos ainda expectantes do "laissez-faire, laissez-passer" verificar, depois da "confissão" do ex-presidente da Reserva Federal dos EUA, Alan Greenspan, sobre os erros das apostas da Wall Street, se o Capital é susceptível de regeneração; se mantém a sua natureza estrutural ainda que mudando de pele, como a cobra; ou se, como o camaleão, toma as cores do ambiente que o cerca e ameaça.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 184
Ano 17, Dezembro 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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