Não é estranho perguntarmos, sempre que nos surge alguém desconhecido, o seu nome, a idade, a residência, etc.. As questões "Onde vives? Donde és? Quem és?" abundam nos diálogos quotidianos. No fundo é uma tentativa de conhecer o outro, de abrir portas à comunicação, de encontrar pontos de contacto para a relação interpessoal. É, assim, uma busca da identidade do outro, uma vontade de saber quem ele é, qual a sua proveniência e modo de habitar a vida para arrumarmos as prateleiras cognitivas e relacionais. Mas é bem verdade que cada vez mais habitamos vários mundos: no trabalhar, na amizade, no residir, etc.. Somos, efectivamente, cada vez mais, multiculturais, interculturais, mestiços, compósitos, translocais e menos monolíticos (na construção social e pessoal já que, nas atitudes, às vezes, o local raia o umbilicalismo). Porventura, não somos apenas uma única coisa facilmente definível e não somos apenas de um sítio. Não nos sentimos de uma única terra; vivemos em mais que um lugar. Por isso estamos; isso sim, não somos. Em vez de sermos, estamos. Estamos em trânsito. Trata-se de uma identificação processual, em gerúndio (estamos sendo) ao invés duma identidade fixista, estática e com base na origem, no ponto de partida, etc. que é para onde remete, na maior parte das vezes, a pergunta "de onde és?", como se se perguntasse, "de onde vens? Qual a tua origem?" Portanto, se quisermos ser claros, as respostas a essas perguntas não são nada fáceis. Talvez por isso, passei a ser irónico sempre que me perguntam isso a mim próprio. À questão "onde vives?" costumo responder com outra questão: "o que entendes por viver? Perguntas onde eu durmo? É isso?". Sabemos bem que muitas pessoas trabalham a muitos quilómetros da casa onde dormem. E é dessa casa que se dá, efectivamente, a morada para o correio, para os amigos, para as autoridades. Mas, em bom rigor, aí fica apenas uma parte da vida do dia de vinte e quatro horas, bem mais curta que a sobrante. Aí fica apenas uma parte do tempo anual da nossa vida. A outra fica noutros locais. E, por vezes, nem nas férias se fica nesse lugar muito mais tempo que ao longo do ano. Então, vive-se onde se dorme? E nos casos em que as pessoas dormem em mais que um sítio ou trabalham em mais que um lugar? Recentemente passei a responder à mesma questão "onde vives?" da seguinte forma: "vivo 2 ou 3 dias em Lisboa, 2 ou 3 em Leiria, 2 dias em Albergaria dos Doze, onde passo o fim de semana". Mas não é fácil. O interlocutor pode não entender, pode entender a resposta como provocação, como ostentação, ou como ironia. Ironia é, de facto, mas no sentido socrático de pôr as pessoas a interiorizarem as novas realidades sociais: há muita vida para além de dormir e muitos locais que alguns cidadãos habitam hoje. Muitos locais para um único sujeito só viver. Somos, pois, identidades em trânsito, em gerúndio. Daí que muitos continuem a insistir "mas vives em tal parte, não é?" Bom, eu diria que esta lógica localista e monolítica está de tal forma incorporada em nós que as perguntas que se fazem desmascaram qualquer postura e discurso que se pretenda ter como pluralista, globalista, etc.. Apregoamos umas coisas e fazemos outras. Os paradigmas educacionais contemporâneos falam das cidadanias múltiplas, da aprendizagem da glocalização, da identidade como processo ao invés de essência mas, contudo, o senso comum que há em nós cai, não raras vezes, nesse essencialismo redutor que formula as perguntas "Quem és? Donde és? Onde vives?" com base numa visão redutora dos processos de identificação. E tu quem és e onde vives? Perguntará também o professor ao aluno. E o aluno que tem ascendentes familiares noutro continente, mas que habita em Portugal, que se identifica com a cultura e língua portuguesas é, por vezes, levado a dizer: "Russo!" ou "Ucraniano!" ou "Brasileiro!" ou "Luso-Afro-Brasileiro!". Categorias! Categorias que encerram as pessoas em quadros estáticos. É caso para dizer que nos falta pensar no gerúndio do viver.
Ricardo Vieira
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