Tinha custado muito, a toda escola, convencer algumas famílias ciganas a manterem os seus filhos a continuar a estudar, depois de quatro anos de escolaridade, especialmente as raparigas. Mas o Luís, sobretudo, tinha sido um caso especial. Mais velho que os outros (estava agora com 14 anos), tinha vindo para a escola quando já andava na feira com o pai e os tios, ajudando e trabalhando a sério. Era esperto e dava bem conta do recado. Veio muito a contra gosto e o pai só ficou convencido depois de longas negociações. Depois, a pouco e pouco, foi adquirindo o gosto por todas as actividades escolares. Com um cálculo mental brilhante era hábil na resolução de vários problemas, e muito participativo. Tinha um sentido estético apurado e adquirira um grande à vontade com a língua inglesa. Todos pensávamos que ele iria continuar, e talvez mais longe que o previsto. Um dia o Luís disse que ia deixar a escola. Como directora de turma senti-me verdadeiramente desapontada, foi um balde de água fria. Tentei convencê-lo, falar com ele. Disse-lhe que não percebia porque ia ele deixar a escola quando tinha tantas hipóteses de sucesso escolar e mesmo social. Ele olhou-me nos olhos, de sobrolho franzido e uma certa picardia no sorriso. Falara sempre com aquele timbre de orgulho na voz e mesmo um certo tom de desafio. Mas naquele dia estava um pouco impaciente porque eu não estava a perceber nada. - É verdade professora, eu até que queria continuar. No princípio foi muito difícil mas agora até estava a gostar. E você é fixe que até a minha mãe acha. Mas eu vou mesmo ter de deixar. Mesmo que fale com o meu pai, não vai adiantar, ele já disse que está tudo decidido. Vou ter mesmo que deixar a escola. - Mas tens a certeza que não podes resolver de outro modo? - Não, professora, não dá? - Mas tu até estavas a acabar o 6º ano, era só mais um pouquinho, esperar só um pouco mais? - Não, não pode ser. Eu caso-me agora e pronto. Caso-me e tenho que começar a trabalhar, a ir para a feira com o meu pai e isso tudo. - E para quando vai ser isso do casamento? - Ah, isso já foi este sábado, quer dizer, estava para ser mas não foi. - Como assim? - Pois, este fim-de-semana era o nosso casamento. Sabe, lá nos barracos até já tínhamos tudo pronto. Ia ser uma festa em grande, veio muita gente dos outros lugares, que a minha família tem gente em todo o lado, e ia haver música a fartar, e íamos dançar até não poder mais. A festa ia ser muito boa. Eu é que não me queria casar agora, mas disseram que tinha que ser agora e pronto. E já que ia haver festa, havia festa? E então quando estava tudo pronto é que aconteceu aquilo. - O quê? - Eles apareceram lá, os bófias, todos artilhados, com os homens da câmara, a mandarem-nos sair, que iam desmontar aquilo tudo, deitar as nossas casas a baixo, e levar os bichos que tínhamos lá e tudo. Foi o fim do mundo, havia de ver. Desmontaram-se as tábuas para as mesas, que já estavam prontas. A minha mãe, as minhas irmãs e as outras mulheres desataram a gritar, os putos só choravam, e era uma confusão com as coisas todas a monte. As coisas todas a monte e sem sabermos onde estava cada coisa? nem queira saber. Eles disseram que tinham avisado mas que ninguém acreditou. Pudera, já estava lá toda a gente há tanto tempo, até o meu avô, que já tem quase 50 anos, já tinha nascido ali; aquilo era mesmo o nosso lugar. E pronto, assim já não houve casamento, agora só daqui a um mês porque estamos todos em pensões, à espera que nos digam para onde podemos ir e numa pensão a gente não pode fazer a nossa festa. Por isso agora ainda posso vir um bocadinho à escola. - E estás triste por não ter havido casamento? - Não, eles, os nossos pais, é que escolheram, e ela é muito feia...
Angelina Carvalho
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