Estando a sociedade num continuum dinâmico de transmutação ao longo dos anos, poderemos perguntar-nos: qual será o primeiro empenho da futura Filosofia? Indubitavelmente ajudar a revigorar a esfera pública de hoje, empobrecida, cada vez mais, subordinada aos interesses particulares, reduzida às diatribes, às guerrilhas entre os partidos e aos bastidores do "espectáculo político" onde se "afiam facas e se contam espingardas."E subordinada, outrossim, ao futebolês, ao estilo de vida dos futebolistas pagos a peso de ouro, com os seus espaventos e sua vacuidade existencial. Esfera pública "invadida" por novelas deformadoras de mentalidades, deformadoras de realidades onde se faz a apologia da riqueza, do "dinheiro fácil", das traições amorosas (e quejandas cenas) como estereótipos ilusórios a transmitir ao cidadão comum que absorve esta representação de opereta bufa. Uma maneira de combater esta deserção, este entorpecimento, esta alienação pública - de perigosos efeitos anestesiantes nas modernas democracias ? consistirá em reflectir em termos políticos e sociais esse mundo desregrado e ensandecido, esse mundo de problemas que hoje tendem a psicologizar-se, a defrontar-se com uma linguagem narcisista, com o isolamento, confinando-se nas secções da "socialite" das revistas e periódicos. Temas onde perpassam igualmente os conflitos familiares; os novos relacionamentos de convivência doméstica; a dominação masculina e a progressiva libertação da mulher; as experiências do próprio corpo; o mal-estar e a precariedade do trabalho; a deterioração das condições de vida; o acesso generalizado de todos os jovens à educação sem que isso tenha representado uma melhoria da qualidade de ensino e onde o professor, como principal agente educativo, é vexado e desrespeitado nesta escola massificada; o aumento das desigualdades no acesso à saúde, verificando-se uma crescente desumanização dos serviços; o aumento do fosso entre ricos e pobres; o empobrecimento e a proletarização das classes médias... Tudo aquilo que era suposto numa democracia (digna desse nome) não acontecer... Mas acontece. Podendo fazer "despertar" da hibernação político-ideológica outras formas de governo que a democracia rechaçou. E que poderão, inquietantemente, assomar quando a situação se tornar insustentável. Toda esta realidade implicará, no futuro, uma maior vinculação e envolvimento do pensamento filosófico, enquanto debate dilucidador das problemáticas do ser humano a que se junta a assumpção dos movimentos sociais que se consolidaram já nos finais do século XX: o feminismo, o ecologismo, a cultura científico-tecnológica, a bioética e as novas formas de afectos a nível da sexualidade que podendo não ser os mais naturais, ter-se-á, inevitavelmente, de lidar com tolerância e compreensão. Portanto, e em certa medida, estes reptos e estas novas realidades hão-de ser para a Filosofia futura o que foi o movimento operário, o marxismo, o existencialismo, o Maio de 68 para a Filosofia precedente. De certo modo, o que se torna comum nestes movimentos políticos e sociais é que suscitam a transformação, não já do ordenamento jurídico e /ou das relações económicas, senão da própria identidade. Aqui se inscreve outro possível cometimento de uma filosofia futura: desmascarar todo o projecto orientado a apresentar as identidades (de género, de etnia, de nação, etc.), como se tratassem de essências, de realidades naturais. Semelhantes programas - saídos da mão do fundamentalismo neoliberal e do novo darwinismo social - estão na ordem do dia; hoje assistimos a uma renovação do biologismo e inclusivé da eugenia (v.g. a obrigatoriedade dos testes genéticos praticados em companhia de seguros), nas ciências humanas e nas suas aplicações. Outro risco neste âmbito, procede da expansão da teoria da decisão racional e de esse verdadeiro "monstro conceptual" que é o "homo economicus". Portanto, se a Filosofia quer fazer frente a estes novos perigos terá de conceber-se menos "pura"; terá de abandonar sua posição "altaneira" de disciplina "fundadora" e terá de abandonar o seu aristocratismo individualista para se converter numa ciência social crítica. Isto não significa renunciar aos grandes textos da tradição que, na sua grande maioria, se mantêm na actualidade. Trata-se de substituir a habitual relação exegética e professoral desses textos por uma relação mais pragmática; o filósofo tem de colocar os conceitos, as ideias, as análises ao serviço de um esforço colectivo - de historiadores, economistas, jornalistas, juristas ,etc.- para se reflectirem e para se reformularem novos caminhos desbravadores para a superação dos conflitos preocupantes do nosso tempo.
António Cândido Miguéis
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