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Performance e património

A ideia de "performance" circula cada vez mais e percebe-se bem porquê. É útil em muitos sentidos, sobretudo conotada com a noção de eficácia, sucesso, (bom) desempenho, que hoje são a obsessão reinante. Mas também é útil nas artes, porque é um "guarda-chuva" que alberga muitas formas de expressão, e está ligada à ideia de movimento, de vontade activa, de investimento no corpo pessoal (na escultura mais visível do eu), de improviso, de animação, de festa, e até de ritual que, à sua maneira, atrai muitos pela nostalgia de algo perdido/fantasiado ou de algo a que querem agarra-se como âncora.
Por isso também proliferam as "tradições", inventadas a todo o momento, e o património se torna cada vez mais "incorpóreo", mais abrangente (segue a lógica da totalidade, do pensamento categorial e representativo e do consumo que é sempre ávido de "fronteiras", novos produtos).
Em muitos casos, na era pós-industrial, e de pós-trabalho como direito realmente concretizado para todos, criam-se como tradições (selo de autenticidade/antiguidade, e vontade de afirmação de diferenças que não se apercebem sempre como a produção de "diferenças" é produto da massificação e da globalização) que permitam fazer sobreviver (pessoas e localidades) e atrair compradores, consumidores, desde a gastronomia a todo o tipo de espectáculos. Formas de (re)constituir sociabilidades, de criar eventos, de viver sensações se possível fortes mas sem compromisso ou grande esforço/empenho, numa época hedonista fragmentada do zapping, em que a atenção está dispersa.
Hoje quem esteja muito seguro de certos princípios, e os leve demasiado a sério, é motivo de troça - está out. É um ingénuo, "un brave type".
Ou seja, o regime de atenção concentrada, emoldurada, que o racionalismo e a modernidade penosamente criaram, com objectos fixos e intenções/metodologias estabilizadas, valores ligados a uma moral burguesa (de classe média) meritocrática, de certo modo terminou. Embora não haja valores publicitáveis de substituição: é gestão, gestão, gestão, a todos os níveis do que se houve falar até ao vómito.
Mas gestão de quê e para quê, para onde, para que estatísticas, para que metas, para que lucros?... os governos mudam mais cedo ou mais tarde, o que é naturalmente bom, mas não se vê muito hoje líderes que ultrapassem a concepção de eficácia administrativa, nem talvez essa ideia salvífica, moral, de líderes, exista já, tenha sentido hoje.
Nem o Estado tem meios para manter uma administração competente, apartidária (como tal), nem a população tem uma nova cultura que seria precisa para ir melhorando o nível dos representantes e evitando o carreirismo. Não falo só do caso português. A crise é geral e tem a ver com uma nova realidade. A reacção das pessoas, sentindo-se impotentes, manifesta-se de forma também zappada, quer dizer, fragmentada e súbita. A democracia foi ultrapassada pela dinâmica do capital, e não pode obviamente passar sem ele. O Estado já não cria empregos, o modelo da empresa e do empreendedorismo é hegemónico. O serviço público privatiza-se, e vem sempre a velha ideia dos contribuintes a pagar, como se eles fossem uma população homogénea. E se eu for comprar um serviço privado, também não pago, como contribuinte? E todos têm possibilidade de recorrer ao privado? Na verdade é uma ordem que até certo ponto escapa aos governos e as oposições sabem disso. O preço do petróleo e do dinheiro à escala mundial é quem manda nas nossas vidas. E a estimulação dos indivíduos a realizarem-se autonomamente é apenas a cara sorridente de um ícone bífido, cuja outra cara é a da mais total desumanidade. Por isso andamos todos a fingir que acreditamos nisto ou naquilo, e o que apenas queremos é um espaço de afirmação, onde possa habitar o que resta do desejo e da auto-estima. Salve-se quem puder.
Por outro lado, não adianta manter dicotomias e ideias do passado a não ser para encher o espaço público com mais poluição sonora ou mental. Separar a "cultura" (a cultura dos "cultos") do resto (a cultura dos outros, ou seja, a de nós todos quando não fazemos de cultos) é aliás, em si, um acto muito perigoso. Suely Rolnik, professora brasileira, escreve em "Micropolitiques" (Paris, Seuil, p. 23):
"O conceito de cultura é profundamente reaccionário. É um modo de separar as actividades semióticas (actividades de orientação no mundo social e cósmico) em esferas para as quais os homens são remetidos. Isoladas, essas actividades são estandardizadas, instituídas potencialmente ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante - em suma, são separadas das suas realidades políticas."
E mais adiante: " A cultura enquanto esfera autónoma não existe senão ao nível do poder, dos mercados económicos, e não ao nível da produção, criação e consumo real". Falando depois de sujeição subjectiva (ib., p. 24), afirma lucidamente que "não se refere apenas à publicidade para a produção e consumo de bens. É a própria essência do lucro capitalista que se não reduz ao campo da mais-valia económica: ela encontra-se também na tomada de poder da subjectividade."
As pessoas hoje são obrigadas a um regime de subjectividade que as obriga a uma atenção vigilante (de que a cultura do telemóvel é um indício forte) que as distrai de pólos fixos afectivos (e a atenção para o estudo, por exemplo, é claro que implica estabilidade afectiva e confiança); e por isso também é que não há sossego em parte alguma. Admiram-se depois as pessoas de aparecerem patologias como o terrorismo, a violência nas escolas, a falta de respeito pelas hierarquias (haveria que haver quais e como se legitimam e legalizam), a extrema ansiedade das pessoas mesmo para realizarem tarefas que lhes exijam um esforço suplementar, o narcisismo extremo e o egoísmo (de crianças, jovens, adultos, velhos) a hesitação e a dúvida permanentes. Foi a minha geração (sobretudo os que tiveram filhos sem poder prever tão grande mutação), e o contexto nacional e internacional, que semearam os ventos de que agora estamos a colher as tempestades.
As pessoas não confiam nas instituições, nem mesmo os que lá estão nelas... há uma imprevisibilidade e insegurança que germina em todo o lado. E o que antes era apocalíptico, agora está aí, exposto, quase banal.
Performance, medida de todos os comportamentos na sociedade do espectáculo, da imediaticidade. Performance também no sentido de uma maior amplitude de possibilidades de criação, de confundir sujeito e objecto. Performance, ultrapassagem da velha dicotomia sujeito-objecto, tema-interpretação. A interpretação é o próprio tema, e o próprio tema é o improviso em tempo real, não a maturação lenta (esta existe, tem sempre de existir, mas não é visibilizada, não é aparentemente valorizada, ou seja, o que importa é o resultado palpável, o brilharete (se por detrás do brilharete houver algo, ah, isso tanto melhor, mas mais vale que a performance dê a entender isso habilmente, senão só muito poucos vão perceber. E só poucos vão perceber porque esta é uma cultura de cuidadosa desatenção à especificidade do outro. Nunca se mostrou tanto para fingir tanto). Há uma enervação, uma cultura eléctrica, uma extática (mística, religiosa, erótica, etc.), uma espécie de "desbordamento", do que parece um excesso. Uma excitação 24 em 24 horas.
Tornar o património "performativo" quer dizer em última análise torná-lo de massas e rentável economicamente. Não é um casamento de conveniência entre uma espécie de aristocracia (património) e uma burguesia à procura de certificado de nobilitação. Isso já foi há muito, séc. XIX, pelo séc. XX. É a junção de duas facetas do mesmo processo de gestão e de ordenamento de um território (um espaço) e de um tempo, onde a componente investigação deixou de ser sacralizada e passou a ser uma alínea, entre outras, de um orçamento, de um processo completo de valorização e manutenção de bens, de valores, colectivos ou individuais. Só que em Portugal este processo de objectificação de toda a realidade como um "recurso de desenvolvimento" chegou tarde por causa da ditadura de décadas. Chegou numa fase de recessão (a de 1973 e a que estamos a assistir agora, entre outras), de fim da guerra fria e de expansão da guerra a todo o planeta, bem como da emergência de novas potências. A guerra colonial deu cabo do país, a sangria de mão de obra foi enorme, e a democracitazão e modernização pretenderam e pretendem fazer-se no meio de um mundo americanizado e pós-moderno, quando nem pela modernidade passámos.
Nunca tivemos um "património" muito vendável, sobretudo para massas, a não ser o sol e as praias, que estão massificadas. A "consciência patrimonial popular" não podia existir, porque não se pode ser objecto e sujeito ao mesmo tempo.
Se eu quero vender um "parque de antiguidades", só o posso vender a quem vive na modernidade e se quer distrair com "esse outro objectificado", com essa espécie de reserva ou "zoo". Mas hoje corremos atrás da pós-modernidade porque os jovens consumidores já nasceram nela e não querem saber do passado para nada nem das dificuldades da geração anterior. Querem, talvez como em todas as épocas, mas de forma exacerbada, tudo e já... não tendo tido uma cultura de contenção, que implica um capital de referência, valores de memória, herança de estabilidades afectivas, por vezes "rebentam".
De modo que nossa sociedade (mundial e nacional, porque não somos uma ilha de tipo Éden...) está infectada, não apenas pela corrupção ou por vírus e vícios: está infectada por um desfasamento de si a si própria, por querer parecer aquilo que não é. Veja-se a quantidade de títulos de livros que se publicam e o pouco que se lê; ou melhor dizendo, o pouco que se lê com a concentração necessária à constituição de um imaginário que não seja enervado, enervante, impaciente, ansioso, violento, neurótico, e deprimido.
Há novos medos, retraimentos, etc. - quando a minha geração, por ingenuidade, sonhou com a liberdade em todos os aspectos, e não apenas formal, do votozinho na urna.
Património, estás a precisar de te estenderes no divã e de fazeres uma psicanálise, não no sentido pragmático e higienista da cura apaziguadora, ou de levares para casa uns comprimidos para andares como um zombie (isso seria mais para a psiquiatria), estás a precisar de quem te pense como performance típica, algo doentia, desta sociedade, como Marc Guillaume tentou já em 1980 definir no livro "A Política do Património" (Campo das Letras, Porto, 2003).
Se performance é toda a actividade humana, que se passa sempre num contexto (não digo num simples cenário), onde observamos e nos sentimos observados (é o velho jogo do look e do gaze) e se o património é tudo o que nos envolve e nos inclui, então os dois conceitos praticamente recobrem-se.
O que é bonito talvez de dizer, mas deixa em aberto todo o problema "administrativo", tanto para o Estado central como para as autarquias (eu ainda penso como um ingénuo, fora da política, segundo uma racionalidade académica - pecador me confesso).
Como estabelecer prioridades, como levá-las à prática quase sem meios, ao nível local, regional (pouco consistente neste país que negou a regionalização) e nacional?
Na prática, o que se faz é ir atrás de iniciativas parcelares que dêem votos, bom negócio e boa imprensa. Pôr os jovens a curtir, pôr o povo entretido, dar matéria para os "media." Por isso o nosso grande património, a nossa grande performance, é o futebol. Por isso puseram bandeirinhas em todas as janelas. As bandeirinhas (=Portugal) existiam sobretudo porque existia "a bola", com todo o que está a montante, a jusante, e no meio.
Comoção, sentimentalização, vida, animação?
Como vai, tudo bem?
Vai-se andando.

Vítor Oliveira Jorge


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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