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Navegar é preciso...

O irrealismo com que os mesmos críticos da primeira visita de José Sócrates, em 2006, a Angola, se lançaram à segunda, realizada em Julho passado, agrupando mais de uma centena de empresários interessados em representar-se na 25ª edição da Feira Internacional de Luanda, leva-nos a imaginá-los ainda professos dos "vieirismos sebásticos, saudosismos contemplativos e junqueirismos retóricos" de que falava Miguel Torga no seu notável, mas pouco citado, ensaio de 1950, "Portugal", para lamentar que o País, rendido agora aos cais sem caravelas, se bastasse com inalações das glórias de antanho.
Entretanto ocorrera que "enquanto os vizinhos da Europa, sem descanso, continuaram a ser pioneiros nas empresas que a vida lhes confiava, nós, enxutos da grande maratona oceânica, ficámos em cima da penedia a ver passar ao longe, a fumegar, as embarcações alheias, e a cantar, ao som duma guitarra, loas à fatalidade."
Ninguém sabe como reagiria, hoje, o Poeta-viajante, que calcorreou todos os mares e terras percorridos pelos portugueses, perante o propósito do actual Governo de retomar os rumos da antiga navegação, pensando em contrabalançar assim o destino de um país de "Sísifos e de Danaides" e resistir à avançada do "Tamerlão invasor" (noutro escrito chamou-lhe Bismark), que ameaça arrasar até as "memórias" (como lhes chamou Pascoaes) das "árvores centenárias, puras como vestais", para dar lugar a empreendimentos imobiliários, e estimula a exportação para a Espanha e a China das fragas e das paredes de granito das aldeias despovoadas, para ali serem convertidas em mosaicos e peças decorativas.
Mas provavelmente concordaria que é preciso continuar a navegar, agora não para avassalar terras pródigas em ouro, prata, escravos e especiarias, mas para fazer "negócio justo", sem confrontar, como aconselha o pragmatismo da soi-disant "diplomacia económica", os tipos de governação e as diferenças culturais dos negociadores. É que estas fatalmente se chocariam se o objectivo do reencontro não excluísse também a recuperação dos esqueletos coloniais conservados em alguns armários do PS e do MPLA, a despeito da "diplomacia política" iniciada, em 1982, com a viagem a Luanda do então chefe do Estado português, Ramalho Eanes.
Foi por terem, finalmente, concluído pela necessidade de uma "superação mental" que os dois primeiros-ministros de Portugal e de Angola se encontraram, em 2006, em Luanda, originando duas situações que a História ? se não perpetuar os esqueletos coloniais ? certamente não omitirá, como fez com a memória do primeiro "descobridor" de Angola, Diogo Cão, depois do seu regresso a Portugal: a primeira, com a declaração feita por Fernando Piedade dos Santos no jantar solene oferecido ao seu homólogo português: "Estivemos juntos quinhentos anos, estamos juntos hoje e estaremos para o resto da vida"; a segunda, com a plantação que ambos fizeram de um imbondeiro - a árvore de longa vida - para marcar o simbolismo do reencontro.
Este gesto (lembrando embora a plantação da mulemba da rainha Nzinga Mbandi, mas esta para recordar o fim da ocupação holandesa, no século XVII...) poderia ter um significado mais histórico ainda se a estátua de Diogo Cão, apeada em 1975, durante o frenesim da independência, do largo fronteiro ao cais da Alfândega de Luanda, não estivesse armazenada, com outras estátuas de figuras representativas do período colonial, na fortaleza, hoje museu, de S. Miguel, e o imbondeiro tivesse sido plantado no jardim do monumento ao que foi uma figura inapagável da "descoberta" de Angola...
A justificação seria simples: em 1482, quando Diogo Cão arribou ao rio Zaire, foi recebido cordialmente pelo príncipe do Soio, estabelecendo-se uma relação de respeito e confiança que o navegador prometeu consolidar quando, após cumprido o seu programa de reconhecimento de toda a costa angolana (a sua missão era prospectar os caminhos para o reino fabuloso do Preste João e para a Índia), voltasse àquele local. Diogo Cão voltou passados dois anos, após ter ido dar a notícia do seu feliz encontro com os congoleses a D. João II, que distinguiu o navegador com merecidas honrarias. Nesta segunda viagem teve o privilégio de ser conduzido à presença do rei Nzinga-a-Cum, cuja corte estava instalada no interior. Confirmadas pelo soberano as impressões de respeito e confiança antes transmitidas pelo príncipe do Soio, foi então firmado um trato de interesse mútuo entre os dois povos, logo pontuado pelo desejo do Manicongo receber missionários e colonos transmissores da língua e das práticas dos portugueses.
Todavia, não fosse a moderna referência que Fernando Pessoa fez na "Mensagem" a Diogo Cão e o registo da chegada das naus portuguesas ao Zaire gravado na "pedra de Yalala", o significado das duas viagens que inscreveram Angola na rota continuada por Bartolomeu Dias ficaria talvez omisso nos principais anais da história das Descobertas, como ficaram omissos o resto da vida e a morte do navegador, após o seu regresso a Portugal. Do que se pode supor que D. João II já não apostou na capacidade negocial de quem, sensibilizado com a postura e a dignidade daquele rei negro, perante o qual se curvara respeitosamente, deveria sem tibiezas carregar as futuras naus com o ouro, a prata, o marfim e os escravos que se dizia abundarem nas terras bárbaras...
Curiosamente, também só na sua segunda viagem a Angola o primeiro-ministro José Sócrates foi presente ao chefe do Estado angolano, José Eduardo dos Santos, que o recebeu no Palácio do Governo com a cordialidade e a confiança inspiradas talvez pela convicção de que, depois dos anteriores contactos frustrados, tinha enfim surgido um fiável "corretor do passado", que se propunha actualizar os azimutes da navegação desejável, não misturando razões com ressentimentos, políticas com negócios. Afinal, só tinham passado três décadas desde a independência de Angola, contadas com uma obstaculizante guerra civil pelo meio. Ora, para o reatamento das relações diplomáticas entre o Brasil independente e Portugal tinham sido precisas mais de sete... E ironia da História ou picardia de algum nzûmbi quinhentista: José Sócrates prometeu corresponder ao interesse manifestado pelo presidente de Angola de receber 200 professores de português...
Era um facto que, convertido o mundo num disputado mercado global cada vez mais percorrido por navegadores oriundos de todos os quadrantes geográficos e ideológicos (Sócrates viu-se, na FILDA, entre 350 representações estrangeiras), quem não ajustasse as modernas naus às correntes oceânicas continuaria parado nos seus velhos "cais de pedra" a "cantar loas à fatalidade" nacional.
Realisticamente, só a crítica enredada como o bicho da seda na teia com que constrói o seu casulo não se dá conta de que, em alternativa à fuga do povo das aldeias para os cortiços das cidades e à crescente ocupação do terrunho pelo Tamerlão, que ameaça derrubar as últimas amoreiras, navegar continua a ser preciso.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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