O conceito de mérito é, em termos profissionais, algo demasiado instável, o que permite que seja, muitas vezes, usado com alguma leviandade. Com origem no particípio passado do verbo latino mereor, a palavra meritu- significava "que mereceu" e depois, por extensão semântica, "salário", "ganho", "serviço", "conduta". O mérito que nós temos ? e a questão só vem aqui a propósito da avaliação do desempenho dos professores e não por razões etimológicas e muito menos por considerações filosóficas ? é afinal o trabalho que realizamos, o que merecemos, que fazemos com a alegria e interesse que a maior parte dos docentes tem na sua profissão. Ser um meretíssimo professor poderá ser razoável para um grande número destes profissionais. Curiosamente, na nossa língua mãe (ou avó?) a palavra meritoriu-, meritório, significava o que procura lucro, ganho. É aqui que a porca torce o rabo, para sermos um pouco mais vernáculos na linguagem. Porque ao conceito de mérito parece estar ligada a ideia base de pureza daquele que realizou durante anos o seu trabalho e para além dele, com todo o préstimo, sem outro interesse para além do da felicidade de si mesmo, intrínseca à dos outros em cuja comunidade se insere. Quando começamos a falar de meritocracia a coisa complica-se verdadeiramente, no âmbito da tradição da organização e regulação das escolas portuguesas. A corrida ao mérito metamorfoseia os professores em garimpeiros cujo ouro muitas vezes não se encontra facilmente no fundo do rio e, infelizmente, se saca com alguma facilidade ao cowboy do lado entre duas pistoladas. O que se pressupunha ser uma virtude, qualidade moral para alcançar o bem, para agir mais próximo de Deus, segundo o cristianismo, transforma-se em obra do senhor das trevas e mina as escolas por todos os lados. Se voltarmos um pouco atrás na linha de pensamento, mais grave ainda é o facto de não podermos considerar e reconhecer o mérito que encontramos ao nosso lado, quotidianamente, há muitos anos. Perante o estabelecimento de regras que hierarquizam a realização e a responsabilidade da avaliação de desempenho, entregando-a a coordenadores de departamentos, presidentes de conselhos executivos e a inspectores, somos privados de exercer o nosso conhecimento sobre o que é bom para cada indivíduo e, a partir dele, para a sociedade; o ethos social é-nos negado, inferiorizado pela lei. Se a ética em educação se rege pelo princípio da aprendizagem da cidadania, numa vivência quotidiana, como vão os professores, amordaçados por uma lei que os impede de realizar caminhos de auto e de co-regulação educar os jovens de amanhã? Se a ética se estabelece nessa relação do indivíduo com a sociedade, quem vai avaliar dentro de uma comunidade escolar a moral, do latim mos, que significava costumes? Recomeçaram de há alguns anos a esta parte os louvores públicos e lavrados em actas. Do Latim laudare, louvar, até ao séc. XV "loar", tinha o sentido de gabar alguém importante ou divindades. Era uma coisa do domínio do sagrado, do mágico e do íntimo, numa noite de luar ou em dia de festa. São ainda usadas as loas a Santa Maria ou ao Menino, sobretudo pelo Natal. Mas ultimamente parece que estamos a ser invadidos por Provençais, de quem dizia D. Dinis, o nosso rei poeta, que "troban e saben loar sas senhores o mais e o melhor que eles podem". Perdoem-me os amigos da Langue d'Oc a comparação, que aqui dá jeito. O problema é que as lideranças - e não só - têm tendência, nas escolas e noutros locais de trabalho, a louvar aquilo que é demasiado público, muito visível, esquecendo serviços prestados por muitos docentes na leccionação de disciplinas novas, no acompanhamento de alunos fora das aulas e dos seus horários, no apoio a famílias, enfim trabalho menos notório. E então louvam-se a si mesmos, louvam os amigos de que viram mais facilmente o trabalho. Às vezes por coisas de nada. Vamos louvar um presidente de Conselho Executivo por ter realizado o seu trabalho normalmente? Ou um docente que realizou estritamente o seu trabalho, ainda que bem? Louvemo-nos uns aos outros, então. O problema é que as comunidades educativas, incluindo os professores, deixaram de ter voz e opinião sobre tudo isso. Chouriço, salpicão, presunto, um anelzito de ouro, ou uma velha amizade e aí vai louvor. Quando o louvor e o mérito perdem a honra, mal vai a Escola e pior anda Portugal.
Rafael Tormenta
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