Comeram os ovos prometendo que nasceriam pintainhos. Nós pagamos os ovos e a compra dos pintos. É a engenharia financeira, estúpido!
No dia em que escrevo este texto [30.09] é impossível escapar ao tema da crise do capitalismo que se abateu sobre todos nós. Os esforços para nacionalizar, por agora a banca, levados a cabo pelos mais ardentes gurus do neoliberalismo é um caso de espanto! O comportamento típico das baratas tontas americanas [voam erráticas acabando emaranhadas nos nossos cabelos] de Bush e do Congresso Americano, acerca do plano de «salvação do capitalismo e dos capitalistas» trouxe-me à lembrança o dito brasileiro: «se ficar o bicho come, se correr o bicho pega». Uma coisa é certa, depois de anos a pagar a roubalheira do capitalismo selvagem agora vamos pagar a incompetência, a estupidez e a ganância do saber e do saber fazer dos vigaristas. O que estamos a presenciar é uma consequência lógica do sistema de capitalismo neoliberal a que temos sido submetidos. Desembaraçado de adversários e de críticos a sério, o capitalismo submeteu tudo e todos e pode, nas últimas décadas, assumir a sua forma mais pura e dura: transformar dinheiro em mais dinheiro sem precisar sequer de produzir mercadorias. Economia virtual. Especulação pura. Desastre previsível. Estados aprisionados. Governos subservientes e ausentes. Os neoliberais criaram uma economia-mundo capitalista com três pilares fundamentais em relação aos quais temos estado praticamente indefesos: 1) o desenvolvimento do terrorismo internacional, privado e de Estado, favorecido pela livre circulação de capitais; 2) uma mistura explosiva da economia-criminosa com a economia-legal, valendo tudo desde que dê lucros; 3) o desenvolvimento do terrorismo financeiro, exigindo o desmantelamento do Estado, o desarmamento politico dos povos e lançando sob estes uma constante acção de rapina e perda de direitos de cidadania. Progressivamente foi a actividade criminosa, sobretudo o terrorismo financeiro, quem comandou a ditadura do mercado ao qual se submeteram servilmente os governos. Os planos de salvação do capitalismo especulativo, a compra dos podres [ontem ainda lhes chamavam produtos sofisticados de engenharia financeira, hoje já os chamam produtos tóxicos] e o pagamento da vigarice praticada pelos especuladores não são mais do que a continuação do servilismo e da subserviência dos governantes a estes interesses terroristas. Será que os povos do mundo, «as opiniões públicas», serão capazes de se opor a esta absolvição e pagamento do crime? Será que somos capazes de nos libertar do jugo a que temos andado atados e de nos mobilizar para obrigar a reinventar o Estado Social? «Tudo o que não avança cai», diz a parábola da bicicleta. A ideia de socialismo (nenhum do que nos venderam até agora) é, possivelmente, a mais moderna das noções da politica. É uma ideia que afirma uma visão do mundo onde a representação e a hierarquia são invadidas pela intervenção, decisão e controlo pelos produtores, pelos consumidores e pelos cidadãos. Este socialismo quer radicalizar a democracia sobre todas as escolhas sociais fundamentais. Obriga à criação de mecanismo simples que permitam ao povo controlar e dirigir o todo social e político. Reclama a centralidade da responsabilidade individual nas opções privadas da vida. Dispensa-nos em absoluto do controle dos poderosos. Coloca na horizontal as relações sociais e políticas. Impõe o sentido de ética e responsabilidade cidadã. Faz dos governos um instrumento da vontade popular. Não permite que, tal como acontece hoje entre nós, um governo fale à esquerda e trabalhe servilmente para a direita. Este socialismo é o exacto oposto do pensamento neo-conservador. Estamos obrigados a analisar o que é hoje o mundo. A sociedade e os problemas que enfrentamos são novos, são de hoje, é certo que transportam traços do passado, mas exigem políticas novas. Os arquétipos do passado são isso mesmo do passado. Este é um tempo de conflitos de concepções-mundo necessários e, por isso, esclarecedores. Não podemos ser tolerantes para os que, à direita ou à esquerda, procurarão escamotear a realidade pela necessidade da sua justificação e sobrevivência. Os governos neoliberais assumiram, nas últimas décadas, o papel de desconstrutores da paz social, obtida na Europa com o modelo social europeu. Modelo em que, pelo menos nas intenções, o Estado assumia uma redistribuição da riqueza a pensar no bem-estar de todos os cidadãos. A luta de classes que vivemos nos últimos anos não foi declarada pelos de baixo, nem chegou a ser verdadeiramente uma contestação da ordem estabelecida, nem foi sequer uma exigência de maior igualdade, ela foi uma luta declarada pelos de cima, por determinação das elites, das classes altas, da nova aristocracia tecnocrata e financeira. Foi esta elite sequiosa do poder absoluto e do lucro absoluto quem declarou a guerra aos debaixo retirando-lhes o pouco que nalguns casos haviam conquistado. A prática politica do Governo de Sócrates é um excelente exemplo desta declaração de guerra ao povo e deste acto de rapina e de servilismo perante os poderosos. O contrato social pós-2ª Guerra Mundial foi denunciado. Denunciado e rasgado pelos de cima. O centro do modelo neoliberal em que temos vivido deixou de ser o bem-estar das pessoas e passou a ser o lucro puro e duro a qualquer preço. Esta declaração de guerra rompeu, na maior parte dos Estados do Ocidente, a coesão social. É neste quadro de ausência de uma ética cidadã, de respeito mútuo e de exclusão que temos de analisar os acontecimentos que nestes dias se abateram sobre todos nós. Nas últimas horas ouvimos os mais empedernidos neoliberais falar e reclamar abundância de regulação. Descontrolados, sugerem que cada capitalista passe a movimentar-se com a pistola do agente regulador apontada aos miolos. Amanhã pedirão a privatização e a transformação em negocio da regulação. Ontem pediam a completa privatização das funções do Estado. Hoje pedem que o Estado [nós] lhes paguemos a incompetência e o lixo que produziram. Ontem o Estado não tinha um cêntimo para tirar da miséria milhões de cidadãos. Hoje surgiram milhões e milhões para salvar a minoria dos terroristas financeiros espertalhões. Ontem a penúria do Estado e o sagrado equilíbrio orçamental não permitia lançar politicas de criação de emprego para socorro dos desempregados. Hoje surgem somas fabulosas disponíveis para pagar os podres do sistema ao serviço dos poderosos. Ontem a gestão privada era a perfeição absoluta e o que era do Estado era degenerado. Hoje pedem ao Estado [ao povo] que pague a ganância e a incompetência criminosa das estrelas da gestão privada. Ontem os «sofisticados produtos da engenharia financeira», as bombas financeiras, rebentaram nos gabinetes das grandes sumidades do sistema. Hoje, nós cá estamos para pagar o desastre. Pagamos? Com que condições?
José Paulo Serralheiro
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