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Porquê? Aprender a perguntar

Leio, por estes dias, a notícia da publicação, na Grã-Bretanha, de um livro original: as 101 coisas a não fazer antes de morrer. Leu bem, caro leitor: coisas a não fazer. Destinos turísticos que as agências de viagens nos vendem como paraísos e que se tornam num pesadelo quando os buscamos como paraísos, corrompidos pelo consumismo e comercialismo extremos. Para o autor do livro, é preferível não ir lá. É apenas um exemplo.
Ao ler a notícia lembrei-me de uma outra leitura, esta feita no Correio da Manhã do dia em que escrevo, em que o matutino se diverte a contar peripécias de um senhor que foi ao "momento da verdade" (televisiva) e que depois confessou, entre o ufano e o corriqueiro, que já lhe aconteceu bater na mulher. Ou da filha deste 'popular' que confessava também, à margem do programa, que precisamente no dia da performance televisiva do pai, tinha obtido a carta de condução, mas à terceira tentativa e ?mediante pagamento de três notas de cinquenta euros.
Talvez por não haver assuntos mais importantes - afinal, que relevância haveriam de ter os 'sismos' que, por estes dias, abalam o capitalismo, com epicentro em lugares e marcas emblemáticas dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha? Talvez por o Correio da Manhã estar bem alfabetizado nas artes de inebriar o povo ? afinal, à vida das gentes que vivem do seu trabalho ou que sobrevivem da falta dele já bem basta o fardo dos dias cinzentos e sem horizonte. Talvez, enfim, por o jornal conhecer demasiado bem o 'seu' povo, é que se entretém com as aparas da vida alheia? talvez por tudo isto o compromisso do Correio da Manhã com a verdade da máquina da verdade ocupe tanto destaque.
Lendo ? e, mais ainda agora, recordando o que li - eu perguntava-me se não fará falta, a par do guia do que há para ver na televisão e noutros media, um guia sobre aquilo que não vale a pena. Por exemplo: "os 101 programas que não vale a pena ver". E um guia regularmente renovado, pelo menos ao mesmo ritmo a que se vai reciclando o lixo televisivo. E quem diz televisivo diz também cinematográfico, radiofónico, bloguístico, de imprensa, de jogos, etc..
É legítimo que nos interroguemos sobre o interesse que pode ter publicar algo que aconselhe outros a não fazer determinada coisa, a não frequentar determinado ambiente, a não ver um certo programa. Afinal, quem somos nós para fazer esse aconselhamento (isto supondo que há quem esteja interessado em ouvir e/ou seguir o conselho)? Aconselhar a partir de que ponto de vista? Recomendar com que critério?
O paternalismo de certas recomendações provoca frequentemente a animosidade e pode tornar-se verdadeiramente ineficaz. Se alguém gosta de ler o Correio da Manhã (para citar o caso de há pouco), quem sou eu para desqualificar esse gosto? E se alguém gosta de acompanhar os fait-divers que cada vez mais enchem as páginas dos jornais e os tempos dos noticiários televisivos, que me adiantará sugerir-lhe que procure informação sobre a falência do banco Lehman Brothers?
Ninguém está proibido de dar conselhos ou, pelo menos, de emitir opiniões. De explicitar as razões das suas crenças, dos seus valores das suas mundividências. Eu tenderei a achar que aquilo que eu penso e de que gosto é o mais valioso e desejável. Mas se tudo fosse o que eu aprecio, o mundo em volta não seria lá muito apreciável. É bom que haja diversidade de gostos, de ofertas, de projectos. Mas isso não quer dizer que tudo seja igual, que tudo valha o mesmo.
Se, porém, assim é, onde está o critério? Qual será o melhor caminho a seguir, ou, pelo menos, o mais eficaz?
Eu não tenho resposta certeira para tal pergunta. Mas atrevo-me a sugerir que um caminho possível passa por podermos conversar sobre as nossas práticas e as nossas preferências. Sobre o que procuramos, o que evitamos e o que não encontramos nas ofertas que nos circundam. Passa por podermos comparar e analisar. E perguntar. E perguntar. E aprender a perguntar.
Há que reinventar uma nova era dos porquês.

Manuel Pinto


  
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Edição:

N.º 182
Ano 17, Outubro 2008

Autoria:

Manuel Pinto
Professor da Univ. do Minho.
Manuel Pinto
Professor da Univ. do Minho.

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