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A censura fascista e os autores portugueses

Quando em Setembro de 1963 me radiquei na capital, levava comigo do Porto o sonho de me integrar na trincheira cultural e isso aconteceu com a entrada na "Ulisseia", que era então uma das editoras de maior prestígio. Era um tempo de grande agitação política, ainda no rescaldo da crise estudantil de 61 e 62 e quando a guerra em África se intensificava em várias frentes de combate. Mas nos tempos iniciais de Lisboa, dividia-me no convívio diário nos cafés "Nacional" e "Gelo", em que as conversas caíam na habitual má-língua ou intrigas literárias e, sobretudo, na troca de boatos e notícias em redor do governo fascista de Salazar, porque pela vigilância constante da Censura e dos esbirros da PIDE, a literatura era (ainda) pretexto para se abrirem algumas brechas na muralha salazarista.
Assim, na memória que sempre tive de muitos livros proibidos por ordem da Censura, recordo como Engrenagem, Esteiros ou Refúgio Perdido de Soeiro Pereira Gomes mal circularam nos anos 50 e só em meados do consulado marcelista se pôde publicar as "Obras Completas" um único volume. Ou livros como Alcateia ou Casa na Duna de Carlos de Oliveira tiveram vida curta e o segundo só pôde ser reeditado em 1965, ou como Bastardos do Sol e Os Insubmissos de Urbano Tavares Rodrigues também estiveram no "índex" fascista, a par de A Invenção do Amor ou O Manuscrito na Garrafa de Daniel Filipe, e, antes disso, o mesmo se passou com O Caminho Fica Longe (1943), livro de estria de Vergílio Ferreira de que foi apreendida na tipografia grande parte da edição da "Inquérito", e anos mais tarde foi a vez de Vagão "J" e do ensaio André Malraux, tal como teve idêntico destino as Histórias de Amor de José Cardoso Pires, reeditado em 1963 sob o título de Jogos de Azar, ou ainda entre muitos outros Aldeia Nova e Seara de Vento de Manuel da Fonseca.
Mas o que a Censura fascista mais directamente pretendia era que o país não abandonasse esse claro obscurantismo, que foi consolidado com a célebre "política de espírito" de António Ferro, e por isso se impunha que fossem cerceados todos os canais de informação. Ora, era nesse domínio que a Censura mais directamente actuava, porque a leitura prévia das notícias condicionava o que devia e não devia ser publicado nos jornais, e na televisão. Mas através dos livros tudo ganhava outra importância, porque aí se falava abertamente da guerra do Vietname, das lutas coloniais, das lutas ideológicas em vários planos, como a guerra fria, o conflito sino-soviético, libertação da Argélia, revolução cubana ou Maio/68. E assim, a par dos livros de autores portugueses, muitos foram aqueles que de imediato deixavam de estar nas livrarias, eram destruídos ou desviados para outros negócios debaixo do balcão.
No regresso à direcção literária da "Ulisseia" em 1967, com outro entusiasmo e maior liberdade de movimentos, pude assistir a uma busca aos armazéns da editora em que ao homens da PIDE procuravam descobrir ainda alguns exemplares da Crítica de Circunstância de Luiz Pacheco, com prefácio de Virgílio Martinho, publicado e aprendido em 1966, e a verdade é que conseguiram levar umas dezenas mesmo sem capa... Depois, lembro a apreensão de Apresentação do Rosto, de Herberto Hélder que de imediato foi silenciado e da editora levaram grande parte da tiragem. De facto, cerca de mil e quinhentos exemplares foram confiscados pela brigada policial e um dos elementos da brigada ainda disse que havia nessa obra "uma evidente carga de pornografia, o que não podia de forma nenhuma ser tolerado". Não pude então entender como os censores se mostraram tão pressurosos na apreciação do livro de Herberto Hélder, que mal chegara às livrarias, mas estou convencido de que na defesa dos bons costumes talvez tivesse andado a mãozinha denunciadora de um dos jornalistas ao serviço do odioso jornal que dava pelo nome de Diário da Manhã, ligado ao regime salazarista, como aconteceu com A Época, onde os mesmos serventuários acertaram o passo e a caneta com a política marcelista em 1968.
Mais recordo algumas histórias edificantes do comportamento da PIDE e da Censura: em 1966, a "Ulisseia" publicou O Clube dos Antropófagos, uma peça de teatro de Manuel de Lima, logo proibida. Certo dia, apareceu na editora um agente da PIDE, que desejava saber se nos arquivos existia alguma fotografia do autor. Não, não havia, apenas constava o contrato de edição e recortes de jornais, mas se queria saber como era fisicamente o autor, eu podia dizer-lhe que era alto, já na casa dos cinquenta, tocava mal rabeca e era careca... O "Pide" levantou-se lesto e disse por entre dentes: "Não, não é esse. Obrigado. Já sei o que queria saber". E saiu porta fora talvez com o seu dever cumprido.
A outra "história" relaciona-se com a edição de Praça da Canção de Manuel Alegre, que publiquei com prefácio de Mário Sacramento e a tempo de a distribuir no mercado e que rapidamente se esgotou antes de a PIDE ou a Censura disso se aperceberem. E alguns dias depois a brigada da PIDE entrou nas instalações da "Dom Quixote", que era no nº. 117 da rua da Misericórdia (e a "Ulisseia" ficava no nº. 125 da mesma rua, mesmo ao lado), remexeram tudo de cima a baixo, mas claro que não podiam achar ali nenhum exemplar da Praça da Canção. Mas, depois de darem conta do engano, apressaram-se a entrar na "Ulisseia" de onde levaram um único exemplar do livro de Manuel Alegre, que fazia parte da biblioteca da editora, e nem por isso escapou ao zelo da própria brigada, que não saiu dali de mãos a abanar.
Poderia falar de muitos outros livros, se acaso recorresse às circulares emitidas com regularidade pelo Grémio Nacional dos Editores e Livreiros que, ao longo dos anos, não deixou de registar todos os livros que, por ordem superior, não podiam circular no País. Mas em tempos a "Comissão do Livro Negro", no propósito de fazer o levantamento do que foi a política cultural e social durante os 48 anos de fascismo, recuperou divulgou com rigor todos os livros que estiveram por largos anos nos "índex" expurgatórios salazaristas e marcelistas.

Serafim Ferreira


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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