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Amor fraterno

Para a minha irmã Blanquita, no dia do seu aniversário.

Não sabia. Não sabia que ias nascer. Foi uma surpresa. Fiquei surpreendido. Sempre tinha sido o único menino da casa, o único neto da tantos avôs e avós, o sobrinho único, quase como é dito por ai, o Unigénito. E, sem saber porquê, às tantas, de um dia qualquer, apareceste tu. Pequena e rechonchuda, toda branca e a dormir, a dormir, sempre a dormir. A mãe já não era apenas, só para mim, era para ser partilhada. Com o pai, quando aparecia das suas cumpridas ausências que a sua profissão o obrigava, esses poucos dias, doravante, eram para ser partilhados entre ele e, desde esse dia, nós. Não sabia que os meus brinquedos eram também para esse bebé calado, essa nova pessoa da família que nem jogar sabia. Sabia, dormir e comer, comer e dormir. Nem chorava, estava sempre calada. Como se tivesse nascido com a sabedoria que a caracterizaria na vida adulta. Como se soubesse que antes de falar, é preciso pensar. Como se soubesse que era melhor ficar num canto que salientar-se e mostrar a sua presença. Ficar num canto, é não resmungar, é não tentar lucrar, é ser amável com os outros ensinando-os a viver. Tarefa difícil para todo ser humano. Ensinar a viver cria quase uma dependência de nós para quem sabe, e, às vezes, ao contrário: é preciso ter alguém que dependa de nós para sermos capazes de subsistir. Esse bebé tinha um cordão umbilical imenso, que a estava a asfixiar. O seu nascimento teve que ser apressado e adiantado. Foi "nascida" vários dias antes da data esperada. Cordão umbilical que não a asfixiou, embora fosse tão cumprido, que até o dia de hoje existe e faz parte da sua pessoal existência. Tão cumprido, que todos dependemos dela, até para poupar a nossa vida e poupar os poucos tostões que temos, ou cêntimos hoje em dia, na economia globalizada do euro e dos Bush, após a derrota aceite com paciência de Al Gore. Um Al Gore que tinha ganho a eleição, como comentava com a minha irmã mais tarde na vida, mas como nada ambicionava, afastou-se da vida pública, dedicou as suas ideias a proferir verdades inconvenientes, que o levaram ao Prémio Nobel da Paz em 2007, na sua luta para estabilizar a vida do planeta. Como a minha irmã, sem actividade pública aparente, mas com muita serenidade e poder silencioso, a comandar os Hospitais da sua Região, tantos quantos eles são. Com calma e sabedoria, com essa serenidade que eu já tinha observado desde o berço. Calma e sabedoria que não lhe têm entregue o Prémio Nobel, mas sim o reconhecimento público da cidadania que ela acompanha com o seu senhorio no comando dos Hospitais sob a sua direcção. No dia do seu aniversário deve-se esconder do mundo, pelos elogios, pelos presentes, pelo cansaço que é estar a dizer sempre muito bem, muito obrigado. Desde muita nova foi a minha companheira de brincadeiras e carinho. Temido estava o facto de ser filho unigénito [1], donde, primogénito, adquirido por ter nascido primeiro e por ter aprendido a ler e escrever antes, e por ser o muito esperado filho único, durante imensos anos. Bebé, que no seu amor materno, a senhora nossa Mãe me ofereceu como presente, agarrei-o e nunca mais o larguei. Sorte a minha. Passámos juntos não apenas a vida de estudantes, partilhámos os nossos amores secretos, adivinhávamos sem falar, quem amava a quem, e eu, como irmão mais velho, era-me devido trazer para casa aos meus amigos e colegas para ela seduzir ou não conforme ela mais simpatizasse. Foi assim, ela casou e foi mãe, ao levar para casa o melhor amigo que tenho tido na vida, hoje meu cunhado e compadre. Se a minha irmã era calma e serena, ficou não apenas em êxtase, como em Teorema de Passolini [2], bem como arrebatada. Sorte a minha desse bebé ter nascido. O amor fraterno é respeito, distância, silêncio, comunicação, apoio quando necessário. E, mais importante, compreensão de ida e volta. Obrigado aos nossos Senhores Pais, pelo lindo presente que me ofereceram para toda a vida.

Definido nas várias entradas de: http://www.google.pt/search?hl=pt-PT&q=Unig%C3%A9nito&btnG=Pesquisar&meta

Teorema é uma obra da escola do Cinema Italiano de 1968

Raúl Iturra


  
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Edição:

N.º 181
Ano 17, Agosto/Setembro 2008

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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