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As cordas

É o que eu lhe digo, professor, é verdade que a escola já não é o que era, não tem nada a ver com a escola do meu tempo, nem do tempo dos meus filhos (que também alguns só ficaram com a 4ª classe, os mais velhos, mas os outros até estudaram). E, nessa altura, a escola era uma coisa muito séria embora verdade seja que nem todos iam estudar. Nem todos foram para a escola, eu vejo pelos nossos vizinhos. Na minha rua só o Sr. Tomás, da venda, é que pôs os filhos a seguir estudos, e depois nós, eu e o meu marido, que pusemos os mais novos a estudar. Mas a escola hoje não tem nada a ver. E ainda tem menos a ver com a escola do meu tempo, é verdade, mas também tudo é diferente, mesmo em casa, cá fora, tudo.
Por exemplo, os nossos pais?Para começar eles nem queriam que nós estudássemos, estávamos a perder tempo, e se fossem as raparigas nem deviam estudar mesmo nada. Já para os meus filhos eu sabia que era importante irem para a escola, tudo estava a mudar e eu pensei sempre que eles poderiam vir a ter uma vida melhor que a minha. O meu marido também achava isso e por isso esforçávamo-nos a ver se eles não tinham esta vida dura, todo o dia na fábrica e na terra, ou na costura e sempre com tanta coisa a faltar. E parecia que sim, que eles até podiam ter uma vida melhor e prontos, até tiveram. Por isso eles podiam ter dificuldades mas esforçaram-se sempre muito.
Por exemplo eu, sempre tive muita ilusão de estudar, de seguir estudos, até porque os meus irmãos mais velhos, que eram rapazes, claro, estavam a seguir estudos. E tanto pedi, tanto pedi que lá consegui ir para a escola industrial. O meu pai não queria mas depois lá cedeu. A escola tinha um director e nós íamos para as aulas e também gostávamos de brincar, mas era quando saíamos das aulas. Não é como agora, na escola dos meus netos que eles até levam para dentro da sala coisas, jogos para brincarem durante a aula, telemóveis para mandarem mensagens uns aos outros e tudo. Que os meus filhos também mandavam bilhetes aos colegas, escreviam papéizinhos e isso. Eles também eram mafarricos e às vezes eu até lá fui chamada à escola?Mas não achavam que estava certo, isso não achavam?
Mas no meu tempo era diferente do dos meus filhos e muito mais do que é agora, no dos meus netos. Mas eu ainda me lembro, lembro-me da minha escola e da minha ilusão de estudar e poder afazer outras coisas além de estar em casa?Lembro-me como era bom sair de casa de manhã, com a minha pasta e os meus livros, de tranças acabadas de fazer, percorrer a rua muito rápida e poder chegar depressa à escola, cheia de outras raparigas como eu, esperarmos pela aula, ouvirmos coisas diferentes em cada dia, e vir para casa com a alma cheia de importância e confiança. Mas não durou muito, sabe? É que um dia houve um drama lá em casa, por causa de um dos meus irmãos. Os meus pais estavam muito zangados, parecia que o mundo ia acabar, não queriam imaginar que alguma coisa estava fora de controlo e?Eu é que paguei. No meio da zanga alguém disse: Ela também não é nenhuma santinha, até leva cordas para a escola! Foi uma denúncia muito cruel. Logo foi aberta a minha pasta e as cordas lá estavam, bem enroladas junto dos livros.
A escola é para estudar não é para jogar às cordas! Acabou-se a escola!
E assim foi. Nunca mais eu pude estudar. Nada adiantaram os meus pedidos e os meus choros. Ali se definiu o meu destino, naquelas cordas e naquela denúncia.
Por isso me custa a perceber estas coisas agora, em que se leva o que se quer para a escola e mesmo para dentro da sala de aula e parece que ainda se tem razão.

Angelina Carvalho


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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