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A língua também é política

Estas linhas são escritas quando se lê a notícia de que um "manifesto" corrido "online" e subscrito por um considerável número de cidadãos portugueses, com várias figuras públicas à cabeça, seria apresentado à Assembleia da República, com vista à não ratificação do Acordo Ortográfico aprovado em 1990 por todos os países membros da CPLP e já ratificado pelo Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Se a aprovação já dada tem algum significado e não será, agora, tomada por uma "leviandade" de quem (não) tinha autoridade para representar o País, o que se afigura mais delicado, no momento, é imaginar como se desenvencilharia o nosso representante na cimeira da CPLP marcada para o próximo mês de Julho, na qual Portugal assumirá a presidência, se defender inusitadamente as reservas "patrióticas" daqueles cidadãos que sustentam que a língua portuguesa é património nacional e, sem o declararem abertamente, que qualquer alienação equivalerá a um crime de lesa-pátria. Só não avocaram Fernando Pessoa (aliás Bernardo Soares) ? "Minha pátria é a língua portuguesa" "porque o "guarda-livros" que pronunciou a celebrada frase (sempre extrapolada do contexto) disse logo a seguir: "Não me pesaria que tomassem ou invadissem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente."
Afinal, o que está em causa não é uma língua (fala e escrita), mas um modelo normativo do português escrito, sabendo-se que as particularidades das falas nacionais continuam incólumes e soberanas. Estas, só as modificará o tempo, em correspondência aos ciclos da vida dos povos, do que se poderia dizer, como Spengler falando da vida das sociedades, "são seres orgânicos, submetidos à curva fatal de todos os seres vivos: nascem, atingem a maturidade, e depois morrem."
De facto, a história das línguas é uma longa história de transformações e mortes, em que fulgurantes "jóias das coroas" (Saussure ensinava que a língua é um "tesouro" de signos arbitrários) desapareceram ou foram remetidas aos lugares do fundo nos relicários das memórias. Com mágoas e amores próprios feridos, porventura, sabido e sentido que a língua é um elemento constituinte (não único) das identidades nacionais, seja enquanto código de nações, seja enquanto atributo psicomecânico de indivíduos. Mas os códigos não são inalteráveis. Já dizia Horácio, na sua "Arte Poética", que é a lei (o uso) que estabelece as regras da linguagem: jus est norma loquendi.
O português não é excepção. E se há historiadores, escritores e filólogos que porfiam defender a sua "jóia da coroa" até ao limite da mística patriótica (veja-se o ensaio de Vitorino Magalhães Godinho no "Jornal de Letras" de Março-Abril passado), outros há, como Carlos Reis (no mesmo jornal), para quem "num mundo que reiteradamente hoje reconhecemos como globalizado, a consolidação de grandes blocos geo-culturais pode ajudar a salvar singularidades e diversidades, mesmo no interior desses blocos, em domínios que estão para além da língua, mas que com ela se articulam estreitamente: na literatura, nas práticas culturais não verbais, nos negócios, na diplomacia, nas organizações internacionais, na ciência, etc. Como quem diz: há idiomas cuja afirmação (se é que não sobrevivência, a prazo) depende também de opções estratégicas que ajudem a contrariar o poder hegemónico de duas ou três línguas com dimensão efectiva ou tendencialmente global." E do que também se poderia dizer: a língua portuguesa, confinada a Portugal, seria uma "singularidade" semelhante à da Finlândia ou da Roménia; enquanto integrando o grupo da CPLP, ela consolida um bloco geo-cultural tricontinental, capaz de competir com qualquer outro de "dimensão efectiva ou tendencialmente global."
Por outro lado, considerada a língua como um instrumento político de comunicação internacional, também o pragmatismo se afigura como um meio de sobrevivência contra os riscos de insularidade, apagamento ou morte... Carlos Reis respondia aos questionamentos dos opositores às "cedências" de Portugal (sublinhe-se: de forma, não de substância) no Acordo Ortográfico firmado em que, em sintonia com outros países de língua oficial portuguesa, atendidas as suas especificidades fono e morfossintácticas, sem reservas mentais ou complexos de quem foi colonizador e colonizado, contribuirá para a afirmação, a par do grupo das cinco línguas mais faladas no mundo, de outra que congrega mais de duzentos milhões de falantes.
Cedências ou concessões fizeram outras línguas "imperiais", como a francesa, a espanhola ou a holandesa, desde que perderam a prerrogativa de guarda avançada das conquistas. Também, neste quadro, o português não é uma excepção. Muitos ainda perguntarão, sofrendo, como Miguel Torga no último Diário, "Que mais nos falta perder", (...) "povo que já foi senhor da sua vontade e dos seus actos", perante o quadro do "idioma degradado, a população abúlica e cada vez mais inculta, os governantes corruptos e traidores, o meio poluído, o passado inteiramente esquecido por mestres e alunos" (...), numa União Europeia onde "estamos, infelizmente, na condição de humildes súbditos agradecidos, sem autonomia e sem voz, atentos à batuta do novo Bismark impante que tudo vai poder e dominar do seu teutónico quartel."
É um compreensível "estado de alma" próprio de quem vê as identidades nacionais renderem-se à política, mas ainda acredita, ou sonha, que há povos que, possuindo uma "alma" maior do que o seu tamanho, poderão resistir (mais uma vez) "orgulhosamente sós"... e infelizes. Por quanto tempo? ? seria outra pergunta, dirigida a quem se pensa e basta com o "tesouro" da língua dentro do seu próprio tempo e não se importa de sobreviver ilhado, no futuro, não obstante as consequências políticas, económicas e culturais daí resultantes, a mais gravosa das quais seria ficar sem anéis e sem dedos.
Reza a sabedoria do povo que "parar é morrer" e "o tempo não volta para trás". Depois do que nos ensinou a história nacional sobre as cedências ou transformações a que foi sujeita a nossa língua desde que os romanos, 193 a.C., a indentificaram como um "latim lusitânico" e no século XII também a norte de Coimbra se autonomizou do "galético", de adaptação em adaptação, temos realisticamente de reflectir sobre o que distingue o orgulho patriótico da vã prosápia quando defendemos intransigentemente o "direito" adâmico da língua, mas não nos importamos em "misturar" jogadores estrangeiros nos clubes nacionais... para honra e prestígio da Pátria.
Uma lição não retivemos do velho orgulho latino: vanitas vanitatum et omnia vanitas.

Leonel Cosme


  
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Edição:

N.º 179
Ano 17, Junho 2008

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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