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O mito do genoma como factor determinante da vida humana é extremamente perigoso e redutor

Alda Sousa nasceu no Porto em 1953. Concluiu a licenciatura em Matemática Aplicada na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto em 1977. Foi professora de matemática na Escola Secundária Infante D. Henrique, no Porto, por um breve período de dois anos (entre 1975 e 1977) findo o qual integrou o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) para ensinar a disciplina de Elementos de Matemática. Doutorou-se em 1995 com a tese "A Variabilidade Fenotípica da Polineuropatia Amiloidótica Familiar: um estudo de Genética Quantitativa em Portugal e na Suécia", baseada num estudo comparativo da Paramiloidose nestes dois países. Actualmente é professora Associada com Agregação do ICBAS, onde exerce funções de coordenadora da disciplina de Genética Básica do 1º ano da licenciatura de medicina daquela escola. Integra também a Comissão Científica do Mestrado em Saúde Pública (ICBAS/ Faculdade de Medicina). É igualmente responsável pelo módulo de Epidemiologia Genética nesse mestrado, bem como no Porograma Graduado em Áreas da Biologia Básica Aplicada.
Integra, como investigadora, a UnIGENe do Instituto de Biologia Molecular e Celular e é colaboradora da Unidade Clínica de Paramiloidose no Hospital Geral de Santo António, no Porto.
Os seus principais interesses de investigação situam-se na área das doenças genéticas (humanas), como a paramiloidose, a doença de Machado-Joseph, a doença de Huntington, e das doenças complexas como a enxaqueca e as hipodontias. No campo de intervenção público, Alda Sousa foi deputada à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda entre Fevereiro e Julho de 2004, qualidade na qual apresentou o projecto-lei sobre Diagnóstico Genético pré-implantação que veio a ser agendado nesta legislatura.
Apresentou e discutiu o projecto de lei do BE sobre Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde, que foi aprovado por unanimidade pelo Parlamento e que viria mais tarde, após discussão na especialidade, a ser promulgado. Colaborou ainda com o Grupo Parlamentar do BE nos projectos-lei sobre Procriação Medicamente Assistida e Investigação em Células Estaminais.
Nesta entrevista, a PÁGINA aborda não só estas questões como outros temas que despertam habitualmente a curiosidade daqueles que se vão interessando pelos desenvolvimentos na área da genética, nomeadamente o que se refere às possibilidades de aplicação médica decorrentes das novas descobertas.

Lemos e ouvimos tantas vezes notícias sobre os últimos desenvolvimentos na área na genética que por vezes perdemos um pouco a noção desse processo. Onde estamos situados actualmente nesse desenvolvimento?

A Biologia, e em particular a Genética, têm tido desde há alguns anos um aumento exponencial em termos de conhecimento e de recursos, quer materiais quer humanos. A nível mundial, e sobretudo nos chamados países mais desenvolvidos, tem-se assistido a uma clara aposta nesta área. Mas, tal como em muitos aspectos da ciência, os avanços no projecto de sequenciação do genoma humano revestem-se de aspectos positivos e negativos, nomeadamente de ideias que considero determinísticas e reducionistas.
Assim, se é consensual que alguns genes podem estar associados à manifestação de características individuais, e até de doenças, tem-se também assistido a uma tentativa de associar a genética aos próprios comportamentos humanos, como se estes possam ter uma causa genética associada. E o mito do ADN e o mito do genoma como factores determinantes da vida humana são extremamente perigosos e redutores, até para as próprias possibilidades da ciência.

No campo dos mitos, um dos aspectos positivos terá sido certamente ter finalizado o mito da raça?

Sim, claramente, pondo de parte a ideia que do ponto de vista biológico existam diferenças entre os seres humanos, o que é um importante contributo do ponto de vista dos direitos humanos.
Independentemente destas considerações, tem-se assistido, de facto, a um conjunto de descobertas extremamente importantes, sobretudo relacionadas com a descoberta de genes associados a doenças, permitindo desse modo desenvolver tratamentos mais eficazes. Será talvez no campo da medicina que a genética tem dado um contributo essencial, permitindo compreender causas para doenças de que não se supunha terem origem genética. Com o conhecimento que actualmente possuímos sabemos, por exemplo, que cerca de um terço da população irá, em algum momento da vida, sofrer de uma doença genética ou geneticamente influenciada.
Por outro lado, as inúmeras possibilidades abertas pelo campo da genética têm despertado uma enorme apetência junto das empresas farmacêuticas, que, em muitos casos, não passam de vendedoras de ilusões.

Porquê vendedoras de ilusões?

Porque a diferença entre aquilo que é o conhecimento real e as possibilidades que se anunciam na cura ou no desenvolvimento de terapias para determinadas doenças é ainda muito grande.

Sem deixar de lado esse aspecto importante da nossa conversa, que retomaria mais à frente, gostava, no entanto, de saber até que ponto Portugal tem conseguido acompanhar a evolução neste campo. Qual é a sua opinião?

Eu diria que Portugal tem claramente conseguido acompanhar a evolução nesta área, possuindo diversos grupos de trabalho extremamente qualificados que têm dado um significativo contributo para a investigação neste campo. Uma investigação que consideraria de ponta e que não fica nada a dever em relação àquilo que é feito noutros países.

Quando se fala dos avanços na genética referimo-nos sobretudo aos benefícios que eles podem trazer na área da medicina. No entanto, que outras aplicações podem derivar dela?

A genética abre um campo de aplicação muito vasto em diversas áreas do conhecimento. Não só em termos biológicos, permitindo uma percepção mais profunda sobre aquilo que é afinal o genoma humano e de como ele pode explicar as diferenças entre os vários povos que habitam o planeta, mas também no estudo da própria história da humanidade, das suas migrações, das diversas linhagens humanas. Uma forma de percebermos um pouco melhor o nosso próprio lugar no processo evolutivo e de entendermos que não é o número de genes que determina a complexidade de um organismo. O que nos remete, mais uma vez, para o facto de sermos muito mais do que apenas os nossos próprios genes, isto é, que embora possam determinar algumas das nossas características eles não determinam a nossa vida.

Que perspectiva abre esse conhecimento para a forma como podemos entender melhor a nossa própria essência enquanto seres humanos?

Tal como já atrás havia referido, no período anterior e imediatamente subsequente ao projecto de descodificação do genoma humano houve, de certo modo, uma tentativa de criar um novo paradigma do ser humano onde o ADN desempenharia um papel central e determinante. Creio que essa ideia conseguiu felizmente ser ultrapassada, percebendo-se que apenas uma parte do nosso código genético integra genes e que uma percentagem bastante significativa possui outras funções, algumas das quais vamos conseguindo descobrir, outras que são ainda completamente desconhecidas.
Por outro lado, e pese embora as diversas tentativas de apropriação de algo que deve ser entendido como um património da humanidade, como é o genoma humano, por via de patentes, gerou-se nessa altura uma vasta discussão pública que despoletou enormes paixões mas também uma enorme seriedade no debate. E penso que esse processo nos arma melhor hoje do que há dez ou quinze anos atrás contra os reducionismos e o determinismo que estavam muito presentes.

Distrinçando a realidade da ficção

Fala-se muitas vezes da possibilidade de virmos um dia a poder reparar os nossos órgãos através da implantação de células retiradas dos nossos próprios tecidos. Isso é realidade ou ficção?

Creio que estamos a começar a sair essa do campo da ficção, com o desenvolvimento da investigação em células estaminais. Mas é importante percebermos, por um lado, que existem muitos limites para a aplicação das
técnicas, e percebermos, por outro, que mesmo essas aplicações terapêuticas estão sujeitas a questões de liberdade individual. Acima de tudo julgo que em torno desta questão se criaram muitas mitificações, como a ideia de que a partir de agora vamos poder pôr em prática uma selecção genética que permita, por exemplo, gerar bebés com determinadas características. Isso não é assim tão simples, mais uma vez porque não nos reduzimos apenas aos nossos genes. Diria que se cruzam aí algumas questões que espelham receios absolutamente legítimos e alguns medos infundados, com alguma mistificação à mistura.

Receios éticos também?

Claro! Confunde-se frequentemente clonagem reprodutiva com clongem terapêutica. Em Portugal, como na maior parte dos países que aderiram à Convenção de Oviedo, a clonagem reprodutiva é proibida ? e bem! E também é proibida (e bem!) a criação de embriões através da procriação medicamente assistida com o objectivo da investigação científica. Mas os sectores mais conservadores tentaram não só impedir a aprovação da lei da procriação medicamente assistida como fazer passar a ideia de que o diagnóstico pré-implantação poderia dar origem a bebés "à la carte". Ora a lei 32/2006 permite este tipo de diagnóstico apenas a "pessoas provenientes de famílias com alterações que causam morte precoce ou doença grave, quando exista risco elevado de transmissão à sua descendência (artº 29), o que não é o mesmo que pretender escolher a cor dos olhos ou mesmo o sexo da criança.

Isso é já uma possibilidade real?

Sim, é uma possibilidade real. É já possível pôr em prática essa técnica num número razoável de doenças, inclusivamente em Portugal, pelo recurso à fertilização in vitro, na qual depois se seleccionam os embriões a ser implantados que não sejam portadores dessa mutação grave.

Uma questão que inevitavelmente se aborda quando se fala deste tipo de aplicações médicas é a possibilidade ou não do seu acesso universal. Para colocar a pergunta directamente: não se corre o risco de apenas os mais ricos poderem vir a beneficiar delas?

Isso dependerá da forma como o Estado regular esta questão. E, de facto, é uma questão central. Portugal tem, desde há dois anos, uma lei que regulamenta a procriação medicamente assistida e o seu acesso. Nessa legislação está, até certo ponto, prevista a forma através da qual se pode aceder ao diagnóstico pré-implantação e contemplado o direito a um número razoável de tentativas de ciclos de fertilização.
Pessoalmente, encaro o acesso a todas as técnicas médicas, sejam da área genética seja de qualquer outra área da medicina, como um direito universal e inalienável. É um direito pelo qual, enquanto cidadãos e cidadãs, nos devemos bater e não deixar nunca que sejam um privilégio para alguns e fonte de lucro para outros.

Acha que existem riscos reais de podermos vir a sofrer de manipulação genética, no mau sentido da palavra?

Não me parece. Novamente creio que aí existe muita ficção e poucas possibilidades reais de isso vir a acontecer. E depois pergunto: o que se pretenderia ou o que se ganharia com ela?
No entanto, há outros tipos de aplicações genéticas que já estão aí a ser utilizadas comercialmente. No que diz respeito aos testes genéticos, por exemplo, que se reveste de uma dimensão complexa e onde existe uma grande irresponsabilidade, porque, na prática, se está muitas vezes a vender ilusões. Tanto em Portugal como nos Estados Unidos, embora este último país seja o paradigma disso. Nos EUA podem-se encomendar, através da Internet, kits através dos quais por meio de uma raspagem bucal, que posteriormente é enviada para um laboratório, se podem fazer inúmeros testes preditivos para determinar susceptibilidades a doenças, etc.
Porém, tais testes não têm em geral qualquer valor preditivo. É que apesar de ser vendida a ideia de que as pessoas podem ser testadas para uma quantidade enorme de doenças, muitas delas revestem-se de uma extrema complexidade para a qual não é possível estabelecer uma correlação directa entre a presença de determinados genes e a ocorrência dessas doenças. Ou seja, não passam de um negócio. Mesmo em doenças em relação às quais é possível, através de um teste de genética molecular, determinar se um indivíduo é ou não portador de uma determinada doença, as chamadas doenças monogénicas ou mendelianas, de que é exemplo a paramiloidose, pergunta-se: o que se faz com esse conhecimento antes do tempo?
Isto levanta questões éticas extremamente complexas.
Por isso, sou da opinião que deve haver uma regulamentação eficaz sobre esta matéria. E Portugal tem uma lei sobre informação genética que regulamenta as condições em que esses testes devem ser efectuados, num enquadramento próprio de aconselhamento.

Propriedade pública versus privada

De quem é a propriedade destas descobertas? O que é do domínio público e o que pertence ao privado?

O genoma humano foi sequenciado num projecto público e as suas sequências continuam a ser depositadas num repositório que pertence ao domínio público. Mas tem havido, de facto, tentativas de patenteamento de descobertas que ficam naquilo que poderíamos considerar uma fronteira ténue. Mas, na minha opinião, não faz sentido deter uma patente sobre conhecimento. Poder-se-á discutir o que é uma patente sobre uma aplicação onde há um conhecimento. Até porque, embora as sequências descobertas através do projecto de genoma humano se tenham tornado do domínio público, torna-se extremamente difícil saber quantos genes estão actualmente patenteados.
Um dos exemplos mais extremos e mais conhecidos está relacionado com a empresa Myriad e com o cancro da mama, na qual esta multinacional patenteou os genes BRCA 1 e o BRCA 2 (Iniciais em inglês para "BReast CAncer"), detendo, praticamente, o monopólio sobre os testes genéticos e a investigação no cancro na mama. Esta empresa sofreu recentemente um revés neste âmbito, quando, em 2005, o gabinete europeu de patentes (European Patent Office) lhe revogou o essencial das patentes. Do meu ponto de vista é absolutamente inaceitável que haja apropriação da patente da realização de testes genéticos por parte de qualquer empresa.

Ou seja, existe ainda um campo nebuloso sobre aquilo que é do domínio público e o privado?
Exactamente.

Mas há algum tipo de regulamentação que impeça isso?

A nível internacional não, a regulação está ainda por fazer. O projecto público do genoma humano apostou desde sempre em colocar no seu sítio da Internet toda a informação sequenciada, mas pelos vistos isso não impediu que, em algumas circunstâncias, tenha havido patenteamentos.
O que é grave é a possibilidade de isto poder abrir campo à discriminação, porque este tipo de testes genéticos, nomeadamente relativos ao cancro da mama, já tem um preço elevado mesmo quando é subvencionado pelos sistemas de saúde.

Adivinham-se, portanto, muitos conflitos legais em torno desta questão?

Com certeza que sim. E ao nível europeu existem diversas instâncias, quer da própria União Europeia, quer de sociedades científicas, que mesmo de diversos grupos de trabalho da OCDE que pedem o estabelecimento de regras neste domínio. A Sociedade Europeia de Genética Humana, por exemplo, tem tido um papel importante no estabelecimento de algumas regras relativamente a estas questões, quer no que se refere ao patenteamento quer aos testes genéticos, procurando por um lado defender os cidadãos europeus da voragem das companhias farmacêuticas, e por outro lado permitindo que estes testes sejam feitos em condições de dignidade e respeitando a liberdade individual dos cidadãos.

As empresas alegam que ao despenderem verbas na investigação genética têm direito à propriedade intelectual sobre elas. Este argumento parece-lhe válido?

Eu não aceito esse argumento porque não defendo um sistema social baseado no lucro e em que a saúde das pessoas possa estar dependente do lucro. É o mesmo que dizerem que os diabéticos não podem ter acesso universal à insulina, por exemplo, porque as empresas precisam de maximizar os seus lucros.

Que poder têm os governos neste campo?

Os governos têm de ter coragem para regulamentar e inclusivamente quebrar o poder dessas empresas, como aconteceu com a África do Sul e o Brasil relativamente aos retrovirais do Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). Não é possível que descobertas avançadas e fundamentais para a humanidade estejam apenas acessíveis àqueles que têm poder económico.

Direitos, Liberdades e Garantias

Passando para uma outra questão: existe um grande debate sobre as aplicações não médicas do genoma humano, como as bases de perfis de ADN que estão a ser implementadas por diversos países europeus e não só. Que riscos podem advir

deste processo? O Reino Unido, por exemplo, está já numa fase avançada?

O Reino Unido já dispõe há muito tempo de uma base de dados deste tipo. E Portugal está a seguir o mesmo caminho, havendo, desde Fevereiro deste ano, uma lei que regulamenta as bases de dados de perfis de ADN. Este processo tem duas facetas centrais: uma respeitante à identificação civil e à identificação criminal. É um assunto muito longo e complexo para se abordar em poucas linhas, mas creio que sobre este processo houve muito pouca discussão pública. E essa falta de debate revela como a "infalibilidade" da genética entrou no paradigma de vida das pessoas ? nomeadamente através de algumas conhecidas séries televisivas ?, tendo o acesso ao conhecimento da genética para esses fins ter sido de tal forma legitimado que praticamente não houve reacção das pessoas relativamente à aprovação dessa lei no Parlamento.

Que tipo de riscos estão presentes?

A lei tem aspectos perigosos no sentido em que se situa numa fronteira delicada.
Porque não deixa de ser preocupante que a mesma técnica de perfil de ADN que pode servir ? e serviu bem ? para promover o reencontro das avós de Maio com os seus netos na Argentina, é a mesma que pode ser usada de um modo excessivo para efeitos de investigação criminal. É óbvio que um perfil de ADN pode permitir ilibar um suspeito. Tem essa faceta extremamente positiva. Mas o que nos deve fazer reflectir são os vários passos e o caminho que seguiram várias das bases de dados em outros países.
Em França, por exemplo, as amostras e perfis de ADN que constavam de uma base de dados começaram por se restringir apenas aos indivíduos que tinham sido condenados por crimes sexuais graves. Aparentemente não há nada a opor a isso. O facto curioso é de esse perfil ter sido agora alargado aos imigrantes em situação ilegal, muitas vezes recolhido de forma forçada, ou à pequena delinquência, como um adolescente que rouba pilhas num supermercado, etc. A lei portuguesa é neste sentido relativamente imprecisa, havendo bases de dados voluntárias, bases de dados de suspeitos e bases de dados relativas a pessoas desaparecidas. Depois, as interconexões entre estas bases de dados, quer a nível nacional quer internacional, não garantem totalmente, na minha opinião, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Sobre esta lei, aliás, quer a Comissão Nacional de Protecção de Dados quer o Conselho Nacional de Ética e das Ciências da Vida fizeram vários reparos justamente do ponto de vista da salvaguarda dos direitos.

Diria que quase se procura através dessa técnica determinar uma certa propensão para a criminalidade. Pelo menos em Inglaterra julgo que existem intenções nesse sentido?

Sim, essa ideia é ainda mais perversa e eu ia referir-me a isso. Mas a intenção inicial não era essa. Nos países onde as bases de dados de perfis de ADN foram implementadas, e mesmo na lei portuguesa, a ideia era fazer deste instrumento um meio para ajudar a cimentar as hipóteses de investigação criminal. Mas a verdade é que em Inglaterra, por exemplo, já se incluem hoje em dia nestas bases de dados os sem abrigo e os pedintes sob a alegação de serem elementos que perturbam a ordem pública. Onde nós chegamos!
O incremento da utilização das situações para as quais são autorizadas estas recolhas coincidiu com a chamada "guerra ao terrorismo". O que não podemos é viver num mundo onde, sob esse pretexto, os direitos, liberdades e garantias são completamente ignorados.
Relativamente à questão que me estava a colocar, alguns criminólogos e investigadores de ciências sociais ingleses começaram de facto a achar que alguns comportamentos menos sociáveis, em particular os que se referem aos jovens nas escolas mais problemáticas, podiam ser indicadores de futuros perfis criminosos.
Já houve, por isso, quem sugerisse que esses jovens mais indisciplinados possam vir a ser incluídos nestas bases de dados. Do ponto de vista científico isto é absolutamente insustentável e é um precedente extremamente perigoso para as nossas regras de convivência comum.

Fazendo quase lembrar os perfis que eram traçados no início do século
XX baseados nos traços fisionómicos das pessoas?

Sim, de certa forma isso faz lembrar Lombroso. É curioso que aborde esse assunto, porque justamente nos primórdios da genética, ou seja, ao longo dos primeiros 20 ou 30 anos do século XX, a genética esteve intimamente ligada ao eugenismo e legitimou mesmo uma série de políticas de restrição de direitos. É o caso dos imigrantes que nessa altura se dirigiam para os Estados Unidos, onde, baseando-se numa lei de base eugénica, as autoridades impediam a entrada de pessoas portadoras de doenças psiquiátricas de origem genética, entre muitas outras. Mais tarde, na Alemanha nazi, a eugenia praticada pelo regime começou por pôr em prática conceitos que eram prevalecentes no seio da comunidade científica da altura, quer no que se refere ao conceito de raça e da superioridade da raça, quer relativamente às doenças psiquiátricas, levando depois essa prática ao extremo que conhecemos.
O que aí é chocante e nos deve fazer reflectir face à aplicação da genética no século XXI é que essa política foi legitimada por muitos geneticistas antes de o ter sido pelo poder político.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Alda Sousa
Professora Associada com Agregação do ICBAS
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Alda Sousa
Professora Associada com Agregação do ICBAS
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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