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Estado fraco, parcerias fortes

Fórum sobre Educação na Guiné-Bissau (II)

As intervenções do segundo dia de trabalhos do encontro realizado na capital guineense no passado mês de Março proporcionaram uma reflexão pública em torno das experiências, dos projectos e das ideias subjacentes às actividades dos vários actores envolvidos na área da educação na Guiné-Bissau.

A associação entre educação e desenvolvimento, problematizada apenas por um ou outro orador, esteve implícita na maioria das intervenções, tal como o discurso de valorização das parcerias entre Estado e sociedade civil. Se estes dois elementos são facilmente identificáveis, eles revelam-se, também, esteios das práticas e das estratégias de acção a médio prazo. Ecoaram, por exemplo, nas falas dos representantes da Federação Evangelização e Culturas (FEC), uma das entidades organizadoras do Forum, com a mesma intensidade com que surgiram no discurso do actual Ministro da Educação, Alfredo Gomes.
No discurso do governante, e quanto ao que define como prioridades na educação, poder-se-á ler a expressão das modalidades e domínios de funcionamento das parcerias, no contexto ideológico, também pouco problematizado, de um Estado fraco e de "downsizing" das responsabilidades estatais nesse domínio: formação inicial e contínua dos professores, revisão e concepção dos manuais de ensino básico, reforma dos currículos, melhoria de condições nas escolas. Alfredo Gomes tocou ainda uma outra corda sensível, a da escassa coordenação entre esforços dos diferentes actores no campo da educação, com consequências negativas, salientou, no cumprimento dos chamados Objectivos do Milénio.

Realidade e enviesamento das estatísticas

A deescoordenação entre entidades estatais ? exemplo citado, entre os ministérios da Educação e da Economia ? seria também denunciada por outro orador, Huco Monteiro, que sublinhou deficiências estruturais como as de "o Ministério de Educação se apresentar como um aglomerado de departamentos sem relacionamento entre si, de o Ministério correr atrás dos apoios e projectos dos doadores, sem haver um documento estratégico", de ausência de visão para o sector educativo e de a educação não constituir prioridade no orçamento do Estado. A intervenção de Huco Monteiro foi bastante incisiva no retrato da educação na Guiné-Bissau. Apesar da aparente positividade de algumas estatísticas (descida da taxa de analfabetismo de 68 para 65% em 15 anos), o enviesamento dos números não deixa dúvidas ao orador. O cenário é o de "um trabalho de alfabetização fraco", para além de o ensino não ser universal nem obrigatório, "de apenas 32% das crianças concluírem a 6ª classe, de 2/3 dos alunos desaparecerem do sistema, de serem necessários cinco anos para consolidar a aprendizagem e evitar o retorno, das crianças passarem em média apenas dois anos na escola e duas horas por dia em aulas" e do domínio da Língua Portuguesa ser um incontornável calcanhar de Aquiles, não obstante o discurso lusófono que insiste no cenário (fictício, em certa medida) de largos milhões de falantes de português. Na Guiné-Bissau, é o crioulo que funciona como língua nacional de comunicação entre os falantes das mais de vinte línguas que existem no país.

Apoio a escolas de base participativa

Do lado das ONGs, as comunicações incidiram em relatos do trabalho desenvolvido e na explanação dos projectos em curso ou a desenvolver. O envolvimento com as comunidades em iniciativas como as das escolas comunitárias constituiu um dos principais motes das intervenções. Foi este conteúdo e o tom da intervenção da representante da FEC, que conferiu forte destaque às iniciativas da sociedade civil, ao "esforço de cidadãos organizados em associações, comités de escola ou de aldeia, ONGs e missões religiosas". Catarina Lopes, antes de exemplificar o envolvimento concreto da FEC na área da educação, procurou fundamentar a importância das escolas de base participativa (os principais beneficiários dos esforços da instituição, através, sobretudo, da formação contínua de professores e de directores e da distribuição de material escolar através do programa + Escola), demonstrando que o aparecimento de escolas de base participativa (que existem também noutros países africanos, como o Mali, Chade, Camarões, Togo e Senegal) corresponde a "i) uma resposta social das populações africanas, sobretudo no período pós-independência; ii) ineficácia do Estado em suprir as dificuldades educativas, em particular em espaços rurais; iii) consciência crescente das populações de que a educação pode ser um motor de desenvolvimento local", entre outras razões enunciadas. Para o sucesso deste tipo de iniciativas, a representante da FEC assinalou a necessidade do que se pode interpretar como a assunção de compromissos sólidos por parte do estado guineense. Traduzindo: a necessidade de ser garantido "um enquadramento legal específico", e também a de, para se alcançar uma optimização de recursos (humanos, materiais e financeiros), serem construídas redes entre instituições estatais e não governamentais, condição requerida também noutras intervenções anteriores e que decorre, justamente, do essencial do discurso das parcerias.
Das percepções e das experiências dos professores guineenses, bem como de algumas realidades que caracterizam as escolas do ensino básico na Guiné-Bisau, procuraremos dar conta no próximo artigo, o terceiro e último desta série.

Humberto Lopes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Humberto Lopes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Humberto Lopes
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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