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Precários e mal pagos

A PÁGINA entrevistou três professores em situação de emprego precário. Seja em regime de contrato ou colocados em Actividades de Enriquecimento Curricular, as perspectivas de vida destes docentes são sempre encaradas a curto prazo e sem quaisquer perspectivas de alguma vez ganharem o estatuto por que tanto anseiam.

Três retratos de precariedade na classe docente

Paulo Moreira concluiu o curso de Educação Física em 2004. Nessa altura ficou apto para concretizar um sonho que perseguia desde há muito: ser professor. A carreira que adivinhava estável e recompensadora, porém, tem-se revelado uma sucessão de empregos precários e mal pagos.
Impedido de concorrer ao ensino público logo nesse ano, tentou a sorte no ensino privado mas sem sucesso. No ano seguinte concorreu em segunda prioridade e arranjou colocação em duas escolas que lhe garantiram um horário completo até ao final desse ano lectivo. A sua carreira profissional parecia estar a encaminhar-se.
No ano passado, em virtude da nova legislação que passou a regulamentar a contratação a nível de escola, iniciou um périplo pelos estabelecimentos de ensino onde sabia haver horários para preencher. O esforço compensou, conseguindo um horário de seis horas semanais numa escola da freguesia de Amares, em Braga. Paralelamente, trabalhava cinco horas numa outra escola em Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC), pago a recibos verdes a 6,75 euros a aula. "O salário que recebia no conjunto não dava para quase nada, mas decidi aguentar porque era a única forma de acumular tempo de serviço", explica Paulo Moreira.
Pelo meio conseguiu um horário suplementar de três horas numa escola em Vila Nova de Gaia. "Aceitei o horário, mas só a muito custo consegui conciliar tudo. Havia dias em que tinha de percorrer a distância entre Amares e Gaia em cerca de 40 minutos. Ao final de um mês vi que estava a arriscar a vida e desisti", conta. Para seu grande espanto, no final desse mês a escola não lhe quis pagar alegando que tinha havido quebra de contrato da sua parte. Resolveu o problema recorrendo à DREN, mas, apesar de lhe terem sido pagos os 200 euros a que tinha direito, o tempo de serviço não lhe foi contado.
As peripécias de uma carreira que mais se assemelha a uma manta de retalhos parecem ter terminado este ano quando conseguiu colocação na escola secundária de Manteigas, no distrito da Guarda, com um horário de 20 horas.
Apesar de só ter garantia de ali permanecer até ao final do ano lectivo ? ao contrário do que acontece com a maioria dos professores contratados, cujo vínculo se prolonga habitualmente por três anos ? está relativamente satisfeito com a sua situação. Ainda que esta seja sinónimo de incógnita relativamente ao seu futuro profissional e do adiamento do planeamento familiar que tanto anseia. "Para já, o meu objectivo é ganhar tempo de serviço e tentar entrar para os quadros no próximo ano. Sei que vai ser difícil, mas é isso que ambiciono".
Apesar de manifestar alguma esperança, já foi mais optimista face à perspectiva de uma carreira estável no ensino. "Com a situação que se vive actualmente, infelizmente as perspectivas são cada vez piores. Mais ainda quando se sabe que as escolas básicas irão passar para a tutela dos municípios e com o crescente estreitamento de progressão na carreira docente, dificultada agora com a nova prova de ingresso. Acho absurdo já estar a ser avaliado pelo meu serviço e ainda ter de prestar uma prova onde existe uma classificação mínima de 14 valores para se ter um lugar no quadro", considera Paulo Moreira.
Razões mais do que suficientes para este jovem professor de 26 anos começar a duvidar sobre se terá feito a aposta mais acertada. "Fiz uma aposta de vida no ensino, mas hoje em dia já coloco algumas dúvidas. E muitos colegas também chegaram à mesma conclusão, desistindo ou fazendo do ensino uma segunda opção. Felizmente na nossa área ainda vai havendo trabalho, apesar de muitas vezes também ele ser mal pago".
Mais ou menos resignado a um futuro incerto, Paulo Moreira reivindica sobretudo maior justiça para os professores contratados através de uma maior transparência nas contratações e de salários mais adequados para quem, como ele, presta um serviço qualificado nas AEC. "Com estes concursos, onde são as escolas a definir os critérios de ingresso, abrem-se portas para situações menos claras. É indispensável haver uma maior transparência no processo", diz. Mas o importante, sublinha, seria a abolição das provas de ingresso, que qualifica de "extremamente injustas" para todos os colegas que saem agora da faculdade e principalmente para quem já trabalha.

Cansada de não ter perspectivas de futuro

Cecília Carvalho está cansada de não ter perspectivas de futuro. Depois de sete anos a batalhar por alguma estabilidade laboral e um salário digno afirma que pondera desistir. Tudo começou em 2001, quando concluiu o curso de escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Logo em Dezembro desse ano começou a leccionar no ensino superior privado. A experiência durou pouco. Depois disso, tem alternado anualmente entre o desemprego e a precariedade no ensino público. O ano passado, por exemplo, limitou-se a trabalhar um mês como professora de Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC). Este ano lectivo as coisas melhoraram, mas pouco: conseguiu uma colocação de nove horas semanais em AEC na área de expressão plástica na EB1 da Bajouca, em Gemunde, concelho da Maia.
Apesar de desde o princípio ter encarado a docência essencialmente como um complemento da sua actividade artística, Cecília Carvalho confessa ter ganho o gosto por ser professora e garante que, por ela, continuaria a aperfeiçoar esta vocação. "O problema é a falta de condições para exercer o trabalho", diz. "Estou a dar aulas desde 2001 e tenho pouco mais de 580 dias de serviço. É muito frustrante".
A escola onde está colocada desde Outubro do ano passado situa-se a uma grande distância do centro urbano da Maia, onde reside, não existindo transportes públicos para aquela zona. Dessa maneira, não lhe resta outra hipótese que não seja deslocar-se diariamente de automóvel. Dos pouco mais de 300 euros que recebe mensalmente, cerca de um quarto é dispendido em combustível. Os 200 euros que sobram mal dão para as despesas do dia-a-dia, impossibilitando-a de se tornar autónoma em relação aos pais.
Considerando que ela e os colegas estavam a receber abaixo daquilo que consideravam justo, decidiram negociar com a autarquia um pequeno aumento. Apesar de o processo estar praticamente concluído, Cecília Carvalho contesta o facto de não existir uma tabela salarial para os professores de AEC que possa servir de elemento de referência.
"A única coisa que existe são recomendações do Ministério da Educação, mas isso não serve absolutamente para nada já que as autarquias são livres de decidir o valor a atribuir", explica. Ainda assim, congratula-se pelos cerca de dez euros horários que recebe, já que soube de colegas noutras partes do país que desempenham a mesma função por pouco mais de três euros?
Perante as dificuldades e as frustrações acumuladas ao longo destes anos, as perspectivas de poder construir uma carreira na área da docência são praticamente nulas. "É quase certo que irei desistir. Há já muito tempo que andava a dizer a mim própria que era altura de procurar alternativas. Aos 30 anos é muito esgotante não ter garantias de futuro. Apesar de gostar muito de dar aulas, não vejo condições para continuar".
Apesar de as alternativas não serem muitas, Cecília Carvalho parece apostada em mudar radicalmente de vida. "Tenho dito um pouco em tom de brincadeira que gostava de ir viver para o campo e dedicar-me à agricultura biológica". Para concretizar este objectivo, tem frequentado diversas acções de formação e está confiante na sua escolha. "É uma forma de poder não só dedicar -me a uma actividade que me dá bastante prazer, mas também desenvolver o meu trabalho em pintura e escultura".
Para os que ficam, e que tal como ela se dedicam com empenho ao seu papel de educadores apesar da precariedade em que trabalham, Cecília Carvalho pede "reconhecimento" pelo trabalho desenvolvido. Um reconhecimento que deverá partir não só das autarquias mas dos próprios colegas em geral. É que em muitos casos, explica, "os professores de AEC não são bem vistos nem reconhecidos pelos seus colegas titulares". Por outro lado, seria indispensável regulamentar mais eficazmente os termos contratuais e salariais em que estes laboram, seja esta uma responsabilidade do Ministério da Educação ou das autarquias.

Nestas condições não há professores que aguentem, terei de procurar trabalho em lojas ou cafés

Cláudia Correia formou-se em Julho de 2006, concluindo o curso de professora do 1º ciclo e ensino básico na Escola Superior de Educação de Bragança. Cheia de vontade de pôr em prática os conhecimentos adquiridos e de iniciar a sua vida profissional, tratou desde logo de procurar emprego no concelho onde residia. Após várias tentativas infrutíferas, veio para o Porto tentar a sua sorte. Chegada a esta cidade, enviou diversos currículos para diferentes câmaras municipais mas o resultado foi idêntico. A esperança que trazia na bagagem começava aos poucos a dar lugar ao desânimo.
Algum tempo depois, soube que a Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo estava a aceitar candidatos para Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC) na área da expressão dramática e expressão plástica para as escolas de 1º ciclo da cidade. Após sucessivos desaires, finalmente uma boa notícia: havia sido seleccionada para preencher um horário de 4 horas semanais. "Apesar de ter ficado bastante abaixo das minhas expectativas, aceitei porque era uma forma de começar a acumular tempo de serviço", explica esta jovem professora de 25 anos. Já durante este ano lectivo a oferta aumentou e Cláudia Correia passou a exercer um horário de 14 horas em duas escolas. "É muito bom relativamente àquilo que é habitual nas AEC, mas ainda assim não deixa de ser um trabalho precário", diz. "Somos pagos a recibos verdes, não temos direito a férias pagas e os feriados também não são remunerados". Dos 15 euros que recebe por cada hora de trabalho, são-lhe descontados 3.75 por cada quinze minutos de intervalo. Tendo em conta que este é o seu primeiro ano de trabalho ainda não faz os descontos obrigatórios, mas sabe que nessa altura a quantia auferida será substancialmente reduzida.
Além disso, o material fornecido pela autarquia portuense é "muito escasso", o que dificulta o seu trabalho com os alunos. "Há material que, quer queiramos quer não, somos nós que temos de o comprar", explica Cláudia Correia, afirmando despender mensalmente entre 15 e 20 euros do próprio salário com esse encargo.
Contas feitas, no final do mês o salário que lhe chega ao bolso cobre apenas o pagamento das despesas essenciais, vendo-se muitas vezes forçada a recorrer à ajuda dos pais. "Principalmente nos meses em que há férias ou interrupções da actividade lectiva, nos quais recebemos apenas o correspondente ao tempo de serviço prestado, o dinheiro não chega para tudo. Nessas alturas não tenho outra alternativa que seja recorrer à família", conta.
Após este período de experiência inicial, mostra-se muito reticente relativamente ao futuro. "Nestas condições não há professores que aguentem, porque qualquer pessoa ambiciona por estabilidade. E desta forma é impossível". Apesar de estar satisfeita com a sua experiência em AEC, Cláudia não desiste de se inscrever nos concursos de colocação de professores. As escassas horas de serviço para já acumuladas, porém, não lhe abrem muitas portas.
"O problema é que o nosso tempo de serviço é contado à hora. Um ano lectivo de nove meses, por exemplo, pode não corresponder a mais de 40 dias de serviço. No meu caso, em três meses de aulas que dei contaram-me dez dias de serviço. Assim torna-se extremamente difícil", diz. Além disso, quando se concorre existe sempre a incógnita relativamente à possibilidade de sucesso. "Nunca sabemos onde vamos estar colocados, não se consegue estabilidade".
Se a sua situação não melhorar nos próximos tempos, Cláudia Correia pondera a possibilidade de regressar à sua cidade de origem ou procurar emprego noutras áreas. "Se não conseguir enveredar pela área do ensino, que é aquilo que sempre quis, não vejo outras hipótese que não seja trabalhar em lojas ou em cafés, onde existe uma maior oferta de trabalho. Não é algo em que me agrade pensar, mas não posso colocar de lado essa alternativa".
Apesar de haver uma série de reivindicações que considera justas para os professores que, tal como ela, se dedicam de alma e corpo à sua actividade a troco de quase nada, Cláudia Correia considera sobretudo premente a existência de contratos, única forma, na sua opinião, de terem acesso a direitos elementares que em regime de recibo verde são completamente ignorados. "Só essa medida poderia melhorar muita coisa", diz.

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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