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O "telemóvel da discórdia" e os desafios da escola actual

Nestes dias, a divulgação pela imprensa de uma cena "postada" na Internet chocou a sociedade portuguesa. Trata-se de um vídeo divulgado no You Tube que foi gravado por um aluno, em seu telemóvel, sobre a tentativa (frustrada) de retirada, por uma professora, do telemóvel de uma aluna, em sala de aula[1]. A cena de disputa (verbal e física) entre aluna e professora teve grande repercussão no país e permitiu que inúmeras reportagens e debates fossem feitos sobre algumas das dificuldades encontradas actualmente nas escolas para "controlar" alunos tão indisciplinados.
Como consequência às cenas de barbárie ocorridas intra muros, os alunos envolvidos no episódio - a menina (dona do telemóvel) e o menino (que gravou e "postou" a cena no site) - foram expulsos do colégio e a escola declarou "tolerância zero" aos telemóveis: os que forem apanhados dentro das salas de aula serão retirados dos alunos e entregues somente aos pais. Os que não forem retirados até o final do ano serão entregues a instituições de caridade.
O fato ocorrido, em si, talvez não seja novo para a maioria de nós - pais, docentes e discentes - acostumados a conviver com as crescentes mazelas escolares: violências incontroláveis, desvalorizações de toda a ordem, inúmeras dificuldades. O que chama a atenção, neste caso, talvez seja a dificuldade e inadequação de muitos de nós (e, neste caso, parece ser o das pessoas envolvidas no episódio) para lidarem com o "novo". E a pergunta que não quer calar é: afinal, como estamos convivendo com alguns dos actuais desafios inerentes à introdução das chamadas "novas" tecnologias em nossas escolas e em nossas vidas (e o uso crescente dos telemóveis é apenas um destes desafios).
Talvez, mais do que impedir o uso deste e/ou de outros tantos dispositivos electrónicos que recorrentemente são utilizados em sala de aula (computadores, mp3, mp4, lousa electrónica, livros digitais, etc.), devêssemos reconhecer a potência destes equipamentos, fazendo uso dos mesmos de forma estratégica e útil à nossa sociabilidade. Pois, até quando a docilidade de quem aprende ? sentado em uma (às vezes, nada confortável) carteira escolar, por horas a fio, cujos únicos estímulos visuais e sonoros, em geral, são a imagem do quadro-negro e a voz do/a professor/a, respectivamente ? sobreviverá à possibilidade tentadora e sedutora que um simples toque (em um comando, em uma tela, em um teclado) nos dá, ao nos permitir migrar para mundos e horizontes descontínuos, fluidos, variáveis, difusos?
Por outro lado, será possível viver na actual sociedade de consumo sem sucumbir às inúmeras ofertas de produtos e tecnologias que prometem verdadeiras revoluções de hábitos e costumes? Bastará impedir o uso de determinados objectos para que nossos alunos (e até mesmo docentes) se tornem mais disciplinados ou educados?
Como poderíamos incorporar, em nossas práticas escolares, atitudes mais flexíveis que permitissem a nossos alunos serem sujeitos deste tempo? Estamos preparados para considerarmos as (actuais) indisciplinas como atitudes de nossa normal sociabilidade?
Enfim, reflectir sobre o episódio do "telemóvel da discórdia" certamente não nos dará respostas fáceis às perguntas acima postuladas (e a outras que o espaço aqui não me permite fazer), mas poderá nos dar indícios sobre aquilo que estamos fazendo de nós mesmos (professores e alunos) na escola e na sociedade actual.
Pois, se a escola precisa se adequar (e se actualizar) para se tornar atractiva e interessante àqueles que buscam nela alternativas para viver melhor em sociedade, conhecer alguns dos mecanismos de assujeitamento aos quais nos submetemos cotidianamente - e que talvez façam com que pareçamos mais indóceis, mais indisciplinados, mais mal educados - poderá nos dar indícios sobre o quanto tais práticas estão associadas a outras que nos induzem (e seduzem) a produzir e consumir sempre mais, sem questionamentos nem resistências, como se a ordem do mercado fosse a única possível.

[1] O vídeo citado está disponível online no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=Z2UKBSVol_c

Cristianne Famer Rocha


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 178
Ano 17, Maio 2008

Autoria:

Cristianne Famer Rocha
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Consultora da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS/OMS), em Washington (USA). Colaboradora permanente do jornal a Página.
Cristianne Famer Rocha
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Consultora da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS/OMS), em Washington (USA). Colaboradora permanente do jornal a Página.

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