Quem não conhece a velha história do velho, do rapaz e do burro? E quem nunca leu, nos livros de História (com h maiúsculo), o desolado desabafo do fidalgo: "Mal com os homens por amor d'El Rei..."? Pois é! Dei por mim a concluir que nem sempre se interpela um autor por incompreensão, ou injustamente. A Ana, leitora atenta, questionou: "Porque é que tenho esta impressão que os professores (homens) são sempre mais pedagógicos, inovadores e alternativos do que as professoras nos artigos do José Pacheco? É porque há mais mulheres do que homens no ensino ou é por (in)consciente misogenia?" Juro que nunca tinha pensado nisso. Mas reconheço que possa ser "vítima" de algo que sobrenada o domínio do inconsciente. Esta leitora deu-me pretexto para uma rebuscada reflexão, o que agradeço. Efectivamente, sempre que abri um qualquer livro que reunisse biografias dos mais insignes pedagogos dos últimos séculos, inevitavelmente deparei com referências a dez ou vinte homens e... a uma ou duas mulheres. Confirmar-se-á que dos fracos não reza a História (com h maiúsculo)? Será mesmo demérito das mulheres? Não creio que o seja, pois, de Louise Michel a Montessori, de Ellen Key a Emília Ferreiro, a lista de ilustres educadoras é extensa. Então, porquê tal ostracismo face a "metade do céu"? Se eu quisesse prestar-me a machismos, diria que, da Alma de Mahler à anónima companheira de Einstein, "por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher". Ou será o contrário? Creio que ambas as afirmações estarão correctas, e será arbitrária a ordenação das palavras. Todavia, resta a injustiça de que me tentarei redimir, repartindo o mal pelas aldeias, distribuindo méritos e deméritos por ambos os sexos. E desde já... Alguns amigos lamentaram que eu tivesse revelado algumas virtudes do ensino dito "tradicional". Ficaram revoltados com a minha recusa em estabelecer dicotomias maniqueístas entre "tradicional" e "inovador". Ficaram histéricos só porque eu disse que "o melhor método é o que resulta", pois "essa afirmação, vinda de quem vem, pode ser usada como argumento para o conservadorismo que domina as nossas escolas". Esta reacção "fundamentalista" não me surpreendeu, e reagi com benevolência. Entendo a perturbação. Só não entendi a exclamação de um desses decepcionados amigos: Parece que também tu (Brutus?...) queres fazer a apologia do regresso ao tempo do Viriato! Esse amigo não se referia ao suposto herói, que punia os invasores romanos sem dó nem piedade. Era outro o Viriato, mas, pelo que me disseram, entre a pedrada certeira do esforçado patriota e a disciplina de caserna imposta pelo vetusto professor, era escassa a diferença. Não será de admirar, pois, entre os personagens desta história e da História (com h maiúsculo) distam somente dois mil anos, uma distância temporal despicienda, se considerarmos serem as mudanças em educação tremendamente morosas. À boa maneira do herói de antanho, o Viriato da história (com h minúsculo) gabava-se de não permitir veleidades aos invasores da pacata sala de aula onde era rei e senhor absoluto. "Impunha respeito, logo no primeiro dia de aulas. Identificava o líder dos desordeiros e arreava-lhe uma sova de mestre, porque, antigamente, o respeitinho era muito lindo, não era como agora, que já não há respeito nenhum" (Viriato dixit). Este ilustre representante de um "tradicional" que eu abomino e dispenso alinhava as suas práticas com o princípio de que o "seu método" era inquestionável e o melhor. Espero com este acto de contrição apaziguar os meus críticos e, em particular, a leitora Ana, a quem concedo a honra de figurar como heroína desta história. No tempo em que a Ana acreditava ser possível fazer formação de professores, coube-lhe em sorte ter o Viriato como formando. O curso visava divulgar diversas metodologias de iniciação à leitura e escrita. A Ana interpelou o Viriato, num dos breves intervalos das conversas paralelas em que ele era especialista. A formadora Ana foi gentil, disfarçando o seu incómodo: O colega tem estado distraído. Será porque o assunto não lhe interessa? Importa-se de falar para o grupo e evitar fazer barulho? Eu quero lá saber do que você está para aí a dizer! Sempre me dei bem com meu método, porque é o melhor. Sempre deu bons resultados. - retorquiu o Viriato. A Ana poderia ter-lhe perguntado se os "maus resultados" de muitos dos seus alunos - aqueles a quem o Viriato se referia dizendo ser "tempo perdido pretender meter alguma coisa em cabeças ocas" - se ficariam a dever a outro método. Mas somente lhe dirigiu a seguinte pergunta: Se o colega afirma, tão peremptório, que o seu método é o melhor, importar-se-á de nos dizer quais são os métodos que considera serem os piores? Não respondeu, e a Ana insistiu: O colega deverá conhecer, no mínimo, mais um método, qualquer seja, para poder fazer comparações com o seu. Não será assim? Quais são os outros métodos que o colega conhece? O Viriato atirou-lhe um olhar mortal, proferiu frases desconexas e remoeu outras tantas (se reproduzidas, em nada abonariam a imagem da profissão) e não mais abriu a boca, durante o curso. Veio-me à memória a sábia sentença freiriana: não há diálogo verdadeiro, se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro, um pensar crítico. Ou, como diria o filósofo, quanto mais se conhece mais se ama. E só se pode amar o que se conhece. Não será assim? Como facilmente se conclui, a ignorância não é uma questão de género...
José Pacheco
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