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Motricidade Humana e futebol

A Ciência da Motricidade Humana (CMH), teorizada por alguns brasileiros e por mim, teve os seus precursores: Jean Le Boulch e Pierre Parlebas, em França; José María Cagigal, em Espanha; Nelson Mendes, em Portugal e João Paulo Subirá Medina, no Brasil. Este, no seu livro A Educação Física cuida do corpo e... "mente", fundamentado no que estudara em Bachelard e Althusser, adianta mesmo: "A Educação Física precisa de entrar em crise, urgentemente", para que o crescimento e o desenvolvimento nela aconteçam.
Palavras proféticas estas, escritas em 1982 e em sintonia com o que se passava, nos outros ramos do saber, os quais sofriam inapagáveis mudanças de paradigma. Coube-me trabalhar o tema da Motricidade Humana, na minha tese de doutoramento (1986), fundamentando-me, em primeiro lugar, na ideia de totalidade da filosofia hegelo-marxista e depois no conceito de percepção em Maurice Merleau-Ponty. A ideia de totalidade referia que não há coisa, não há ser humano, não há grupo, não há sociedade que não devam perspectivar-se, dentro de uma totalidade e das contradições que ela encerra. Não há indivíduos fora de um todo, como não há uma totalidade que não se constitua de elementos individuais. Mas todos estes elementos em relação dialéctica, pois que integram o mesmo todo. O mundo é holístico, indiscutivelmente. E porquê em Maurice Merleau-Ponty? Porque o autor da Fenomenologia da Percepção afirmou, pela primeira vez na História da Filosofia, que "o saber absoluto do filósofo é a percepção" e que "perceber é tornar presente qualquer coisa com a ajuda do corpo". É pelo corpo que eu conheço. Neste filósofo, há uma crítica vigorosa contra todos os dualismos tradicionais (corpo-alma, homem-mulher, branco-negro, senhor-servo, etc.) e uma defesa inconfundível da passagem do corpo-objecto (ou corpo-instrumento) ao corpo-sujeito, pois que o corpo não se reduz a simples organismo, ele é uma rede de intencionalidades, um horizonte de possibilidades, a fonte da comunicação com o mundo.
Desta filosofia de base e tendo em conta também a descontinuidade na História das Ciências, tanto as pessoas que me acompanhavam como eu decidimos criar uma nova ciência humana e social, a CMH, integrando nela o desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação psicomotora, etc., isto é, todas as actividades onde predominar o movimento intencional de uma pessoa que pretende superar e superar-se. O futebol é a modalidade desportiva que mais entusiasmo desperta, no mundo todo. Mas, como motricidade humana que é, dele emerge a complexidade humana: o físico, o biológico e o antropossociológico. O futebolista que provoca admiração e espanto não tem só qualidades físico-biológicas invulgares, com uma ou outra excepção ele é também um homem com um psiquismo forte, de autêntico vencedor. Por outro lado, se o desporto é um dos aspectos de uma ciência humana, não cabe nele uma hiperespecialização que obstaculize uma visão do global ou da complexidade humana. Os problemas fundamentais, no futebol (como na vida) nunca são parcelares, porque numa totalidade (ou complexidade) tudo está relacionado com tudo. Um treinador de futebol, por exemplo, incapaz de descobrir o complexo que fundamenta o aparentemente simples não pode ser treinador de futebol, nos dias de hoje. Assim, um departamento de futebol deverá compor-se de especialistas de várias áreas, para que a inter, a intra e a transdisciplinaridade se tornem possíveis. O conhecimento, num treinador de futebol, desenvolve-se tão-só quando se é capaz de contextualizar e complexificar. No desporto, quem sabe muita biologia e não entende a realidade humana é, de certo, um líder com inúmeras insuficiências. O desafio cultural que se coloca ao treinador de futebol reside aqui: a sua cultura há-de ser humanista, fundamentada também nas ciências e científica, fundamentada também nas humanidades. Para tanto, ele tem de fazer da informação que lhe chega dos especialistas que o rodeiam matéria-prima que deve integrar e dominar. Quem sabe de futebol sabe necessariamente mais do que futebol. Como escreve Edgar Morin, no seu livro La tête bien faite, há necessidade imperiosa "de uma reforma, não programática, mas paradigmática". Também no futebol, onde há gente a mais, sem uma visão política de progresso e desenvolvimento.
Como Montaigne ensinava, mais vale uma cabeça bem feita do que atulhada de conhecimentos. Por isso, há princípios a não esquecer: o conhecimento científico, hoje, é intra, inter e transdisciplinar (sou tentado a acrescentar que as ciências, hoje, são sistémicas); onde predomina a redução e a compartimentação, a visão é defeituosa (a interrogação: quem somos? é inseparável de uma outra: onde estamos? Donde viemos? Para onde vamos?); as ciências humanas dizem-nos que o ser humano e portanto o futebolista é simultaneamente o homo sapiens, o homo demens, o homo faber, o homo ludens, o homo prosaicus, o homo poeticus, etc.; a incerteza é a primeira característica da complexidade (conhecer não é chegar a uma verdade certa, mas dialogar com a incerteza); a prática desportiva é essencialmente sinal, mensagem, texto e o método que o treinador deve utilizar, acima do mais, é a hermenêutica (quem diz hermenêutica diz compreensão e compreender é captar o sentido); se o treinador é o líder que lê e interpreta, para dialogar e comandar, já que a prática desportiva se resume a textos e acções, a capacidade de liderança é essencial ao treinador; o líder é um apaixonado pelo trabalho em comum (ele, normalmente, encoraja, não culpa) e sabe transmitir à sua equipa essa paixão, ao mesmo tempo que se faz admirar pela integridade moral, competência, coragem e audácia; o melhor treinador não é o que sabe muito, mas o que vence mais jogos e, por isso, deve ser culto, entendendo a cultura como a aliança do saber e da vida; o futebol é um dos aspectos da motricidade humana, onde o humano é, quase sempre, mais do que a soma das partes. Poder-se-á dizer que o treinador de futebol é um especialista em Humanidade?...

Manuel Sérgio


  
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Edição:

N.º 177
Ano 17, Abril 2008

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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