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A língua não nos separa

Quando falamos sobre vivências culturais, a tendência primeira é tomar as nossas como "corretas", adequadas", "naturais" e "normais", enquanto as dos outros - os que não pertencem ao nosso grupo ? consideramos como "exóticas", "inadequadas", "espantosas" ou, decididamente, "risíveis".
Pois essa tendência moralista e etnocêntrica parece se exacerbar quando falamos de nossa língua, isto é, da variedade lingüística que usamos para falar e, secundariamente, para escrever, em relação às variedades de outros usuários. É então que a paixão invade nossas afirmações e nossos julgamentos, como se efetivamente estivéssemos disputando a posse de uma língua - objeto que só poderia pertencer monogâmica e legitimamente a um (1) grupo - etário, regional, social, cultural, etc. Certamente o que afirmo não é nenhuma novidade para professores de Língua Portuguesa, em cuja formação, nas últimas décadas, tem estado presente a discussão da variedade inerente às inumeráveis línguas humanas, assim como os preceitos de que todas as variedades lingüísticas têm idêntico valor comunicativo e similar complexidade estrutural. Verdades acadêmicas à parte, entretanto, os grupos sociais estão sempre envolvidos em alguma espécie de discussão sobre
correção, "empobrecimento", "deturpação" ou, até, de maneira apocalíptica, sobre o "desaparecimento" de uma língua. E é claro que, a tais discussões, subjazem variados mitos, entre eles o mito de origem, o sonho edênico de um momento passado e um espaço em que a língua era "bem falada", "todos sabiam escrever" e "falar corretamente", não existiam os temíveis monstros das palavras estrangeiras engolindo as vernáculas, nem aquelas "modalidades escritas da Internet e dos telemóveis", com suas novas "invenções".
Mas também há o mito da "correção" como adequação lógica: a um pensamento elaborado só se adaptariam determinadas formulações sintáticas e preferências vocabulares. E isso sem falar, talvez, na mais entranha das crenças: a de que a língua "mesmo" é a língua escrita (e formal). Quer dizer: se se fala diferente do que se escreve, se está no caminho da maldição lingüística... Tais considerações me vêm à mente por vivências recentes de encontros, desencontros, surpresas e risos trazidos pela multiplicidade dos aspectos diferenciados entre o "português" luso e o "português" brasileiro (e, obviamente, já efetuo, aí, uma notável simplificação e unificação do português falado nesses dois países, além de desconsiderar as outras variantes lusófonas mundo afora). Mas, certamente, vivências desse tipo podem tanto demolir nossos preconceitos irrefletidos, como municiá-los de mais exemplos, conforme o olhar que sobre elas se deita. Pensemos um pouco dentro da primeira hipótese. E já relembro o quanto se esfalfam professores de Português nas escolas brasileiras para ensinar que o pronome "consigo" não pode substituir COM mais pronome de tratamento, tendo apenas um valor reflexivo, como em frases "Ele levou consigo o valor da venda". Ora: basta atravessar o Atlântico para deliciarmo-nos com a audição de um "Posso falar consigo?", enunciado por amigo luso, letrado e cortês. Brasileiros/ as aqui encontram ? vívidos e cotidianos ? os pronomes de 2ª pessoa do plural ? vós, vosso... que julgavam ser idiossincráticos requintes de literatura de outros séculos, ou instrumentos de tortura de sádicos mestres. Denominações de peças do vestuário provocam confusões hilariantes ? a camisola portuguesa não é o mesmo que a camisola brasileira; a cueca, no Brasil, é uma peça íntima masculina e, enfim, fato, para qualquer brasileiro, é um acontecimento e nada tem a ver com indumentária. E os exemplos se multiplicam, potencializados pelas diferenças de prosódia, pelo timbre das vogais, pelas consoantes chiantes em início de sílabas, pela (nossa) dificuldade em ouvir as vogais átonas lusas, e me abstenho, prudentemente, de esboçar dificuldades equivalentes que os falares brasileiros provocam nos ouvidos lusos (mas que, certamente, existem, haja vista a atenção com que funcionários de inúmeros estabelecimentos e instituições se põem a escutar os/as brasileiros/as). E os exemplos podem se multiplicar geometricamente em qualquer campo de atividade onde se incursione. Mas não creio que, a partir disso, se possa dizer ? como já se tornou usual ? que "Portugal e Brasil [a exemplo de Inglaterra e Estados Unidos] sejam dois países separados pela mesma língua". Se a antítese e/ou o paradoxo constante(s) da afirmação são um achado textual e seduzem, não apontam, entretanto, para possibilidades fecundas que vêm do partilhamento de uma mesma língua por dois ou mais países.
É claro que não se ignora o peso simbólico de marcação de identidade, de diferença ou pertencimento que têm os sotaques, os torneios morfossintáticos, as escolhas vocabulares das diferentes variantes. Mas a convivência com outras variedades de "nossa" língua parece, antes, nos enriquecer discursivamente, multiplicar formas de expressão, propiciar cotejos, mostrar nuances, detalhes, provocar análises e reflexões do que... separar! "Desfamiliarizar-nos" talvez seja um termo central para os efeitos deste encontro. Pierre Bourdieu já há algumas décadas ponderava que a educação para a convivência precisaria fundamentar-se num exercício de desfamiliarização, que levaria a vermo-nos também como estranhos, como se fôssemos os "outros", e aos nossos costumes e línguas como "diferentes" a olhos alheios.

Rosa M. Hessel Silveira


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Rosa M. Hessel Silveira
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Univ. Luterana do Brasil e Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO)
Rosa M. Hessel Silveira
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Univ. Luterana do Brasil e Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO)

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