Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu A gente estancou de repente Ou foi o mundo então que cresceu
Meu desejo com este texto é apenas compartilhar uma impactante imersão na veia de uma escola de ensino fundamental carioca.
Nos primeiros contatos com a escola, percebi uma sofreguidão de uma das suas diretoras por causa de chave. - Onde está a chave? Com quem ficou a chave? Perdi a chave? Fulano não veio e não trouxe a chave... Por duas vezes, em cerca de 10 a 15 minutos, em dias e momentos diversos, esta foi uma questão mobilizante.
Agora sei, tudo é chaveado: o auditório, a sala dos professores, o acesso a andares e salas, desejos, corações...
Ouvidos atentos...?Chama lá o Gigante!?. A outra diretora da escola solicita que um estudante chame o Gigante, que é um estudante da escola, menino bem alto, para ajudá-la numa atividade da escola.
Nesse mesmo dia, sendo convocada a ver como a ?forma? se dava, já que, no próximo dia seria minha vez, vejo/escutando a mesma diretora da escola aos gritos, literalmente, chamando @s estudantes para formar, momento que ocorre na quadra. Escuto a expressão ?Saci Pelado?, ao olhar, vejo a diretora de pele negra, chamando assim um estudante negro, que estava sem camisa na quadra. Fiquei em silêncio, mas registrei no coração, talvez chaveado no momento do acontecimento.
A gente vai contra a corrente Até não poder resistir Na volta do barco é que sente O quanto deixou de cumprir
Na quadra, ao observar a entrada, para aprender como é feita a forma, para ida às salas, a diretora da escola se dirige a mim dizendo : - Uma boa noticia e uma ruim. Boa, eu vou dar a entrada, ruim vamos pegar turma pois uma professora faltou.
Mais um impacto, já que não me vejo/via ?dando entrada?, sobretudo aos gritos, nem ?tapando buraco? de professor(a) que por algum motivo faltou. Por outro lado, nem ter que assistir aquele tipo de encaminhamento às salas de aula é bom para mim, nem eu pegar turma é ruim. Mas o que me incomodou, afinal? Autoritarismo, arrogância, incompetência, o projeto, o desrespeito profissional, os gritos, o caos ,o desespero presente naquela escola...O que será?
Entrada nas salas:
A professora de geografia faltou e fui mandada à sala de uma 5ª serie. Óbvio que não me recusei pois acho que eles, os/as alunos/as, são prioridade. A ?ordem? aos estudantes era fazer uma atividade que a professora havia mandado, ou seja, ler um capitulo de um livro didático de geografia e responder as questões do capitulo. Não diria um absurdo, mas um constrangimento, pois a atividade tinha com objetivo, apenas manter os estudantes na sala.
Antes da tarefa do livro, pedi, por curiosidade, insurgência e inspirada em uma atividade de militância, e, também, por um certo desespero, que eles escrevessem o nome, data de nascimento e idade e o que eles seriam em 10 anos.
Faz tempo que a gente cultiva A mais linda roseira que há Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
O comportamento das crianças e adolescentes foi o mais variado, mas todos desenvolveram a tarefa solicitada. Contudo, não pude deixar de ouvir de alguns ?não sei?, ?estarei morto? e outras provocações significativas.
Fui às respostas, tentando sair da rede dos gritos, do confinamento dos alunos em sala, ausência de um projeto de atividades complementares, em caso de ausência de professor - fato que é real e concreto,....
Dos 19 meninos, 14 querem ser jogadores de futebol, e 5 querem outras profissões como bombeiro,escritor, médico, dentista e ?daqui a des anos EU quero te minha casa e minha familinha e um trabanho e uma motor.?, a idade deles varia de 11 a 14 anos .As cinco meninas presentes fizeram a tarefa e, todas, sonham com marido e filhos.
Durante cerca de 100 minutos, fiz uma imersão no cotidiano de uma sala de aula, antiga 5ª serie, de uma escola carioca: crianças atentas, levadas, interessadas, desinteressadas, leitoras de palavras, ainda não leitoras de palavras, crianças com vários comportamentos, inclusive desagradáveis, que se ?agridem? com palavras como favelado, ladrão, piranha, otário!... Coações, destruição de material, uma constante simulação de brigas, agressão imanente. Mas muita energia vital
A roda da saia, a mulata Não quer mais rodar, não senhor Não posso fazer serenata A roda de samba acabou A gente toma a iniciativa Viola na rua, a cantar Mas eis que chega a roda-viva E carrega a viola pra lá
Um mix de raiva dos políticos, compaixão pelas crianças e pena das professoras. Ao pensar nas nossas escolas, imagens me tomam, como a de uma represa a ponto de arrebentar, de um barril de pólvora com uma faísca por perto, de uma guerra em gestação... Mas, a vida pulsa lá dentro, logo...
Roda mundo, roda-gigante Roda-moinho, roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração
Azoilda Loretto da Trindade
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