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As palavras de ouro
Esbanjemo-las. Digo e repito: esbanjemo-las. Podem bem ser pontapeadas como um grito que arranha em desvario sobre as cordas de uma harpa, que elas não se quebram, até podem ser dedilhadas com o carinho de um murmúrio, que ainda assim vibram intensas, e se a arte delas se usar rogando o pasmo pela novidade escondida entre as notas, sobrepostas e entrelaçadas pela nossa imaginação, não mais terão descanso sem que haja pautas que as dominem ou fronteiras por que se esvaiam, sempre a flutuar sobre o esquecimento. Sejam servidas no requinte das confissões, com forma de afectos, segredos de amantes, conselhos sábios, saudações da solidão, conquistas do mundo, sejam o pão que sobeja para ser roubado de uma folha rasgada, de uma conversa alheia, de um lamento desdenhado, de um erro repetido, sejam grunhidos, néon, angústias ou aplausos, novas, velhas, estranhas ou vizinhas, sejam na sua tirania a prova de um néctar amargo, o vício inocente, a alegria e a eterna clava com que nos redimimos do tempo. Serão as nossas asas, o sonho dizível, a impossibilidade das trevas que alumia sempre junto do ouvido, como quem conforta sem rosto, a porta escancarada para o rodopio de uns que entram, outros tantos que se escapam, todos em demanda da realidade onde ela insiste em não estar, na viagem que eleva como a imaginação que só elas franqueiam porque também aí estão presentes e palpáveis.
O pudor, o pudor começa nas palavras como começa o choro que é o primeiro apelo num berço, começa no prazer do leite materno como começa na cobiça, na novidade dos orgasmos que se exigem como se haja sempre uma conversa por encetar, um mistério nos rostos cujos lábios pedem a primeira notícia. E elas então põem as respostas no seu lugar, tomam posse dos sentimentos recônditos, cirandam a tentar a prova de um sabor novo, sempre disponível, e caem sobre as dúvidas encharcando-as de soluções, inundam de tinta a virgindade que mesmo as cavernas já perderam, e ensurdecem como os ventos que carregam o nome das coisas. As palavras não se perdoam quando não encontram caminho, se não as albergam à chegada, e vestem-se com as cores dos gestos bebidos das ideias, despem-se como os homens a que o desconforto do traje se liberta na intimidade. E revelam-se, tanto com a beleza de um timbre a arfar de emoção, como com a cor de uma ilustração irrepetível. E encontram um lugar em que se aparentam com alguém, com algumas outras talvez, mas em que têm um acento que as distingue porque estão de mãos dadas com os parceiros certos, os seus amantes fiéis, mas tragicamente de ocasião.
As palavras não se regateiam o troco, parco que seja chega sempre, será o possível, e se não for na ocasião haverá sempre oportunidade, se não houver virão novas em qualquer tempo, se não houver tempo ficará a memória da generosidade. Num qualquer lugar darão a sua resposta, a recompensa inestimável, sem se pouparem a cantar o que não viram e a descrever paisagens que existem enquanto andarem nas bocas do mundo. Atiram-se pelas janelas, as palavras, sopram-se aos sete ventos, ficam no bolso para uma ocasião especial, e cuidam-se com desvelo em cerimónias que não prescindem da sua aparência. Quando se desenham a régua e esquadro ou nasce ciência ou a habilidade empapa-se com o suor em que se respiram a inspiração dissolvida na matreirice. As palavras não gostam de ser moeda de troca numa bolsa que vicia o seu valor, como os beijos que se vendem sem serem ouvidos, elas são carícias que se retribuem. Venham daí, livrem-nos do espartilho se a bebedeira deixar, estendam-se sobre as colinas inscritas no castanho dos pergaminhos perdidos, e sejam descobertas nos vasos que bebem orvalhos sob os alpendres como quadras de eleição presas aos manjericos. Lancem-se ao céu que clareia para as vidraças embaciadas revelarem os desenhos das fórmulas da felicidade. E os dias sejam canções, não importa se melancólicas, se arrojadas pela força que enfrenta injustiças, se trauteadas no compasso do alheamento, mas que sejam feitas das letras com que se escrevem os nomes das pessoas.
Mas antes de serem regadas como as bebedeiras devem sê-lo como os manjericos. E, se umas passam e aqueles murcham, elas crescem como os livros que vão sendo guardados desde a infância, para darem lugar a quantos beberam já e se fazem firmes e com a mesma beleza entre as linhas. Até nos apercebermos de que há uma infância aparente no passado das letras em que se aprende mais do que seria suposto, em que os cinco sentidos nos eram comuns e o olhar sobre o mundo tinha clarividência. Um passado a que as palavras resistiram, sem desvalorizarem, sem vacilarem perante as invernias em que hibernaram as histórias e tremeram as mãos ensinadas, como tantas de hoje se enrugam sem temer o desígnio das obras. Não são as palavras que mudam, é a porta entre a realidade e a imaginação que se esboroa na vertigem, na ilusão de um labirinto que tem afinal sempre todas as suas circunvoluções com a liberdade ao alcance da vontade. As chaves serão sempre as palavras, e a forma como são ditas detém o segredo, um para cada caminho, o caminho de cada um, todos preciosos e inesgotáveis. Não se amealhem, haverá fortuna como no chapéu mágico de que se exibem sempre mais artefactos, remédios para quaisquer dores, tintas para todos os quadros, e virão sempre à luz os livros de todas as infâncias, os amigos de todas as brincadeiras, os olhares de todas as intimidades, respostas para todas as charadas, todos inventados e todos verdadeiros por poderem ser ditos e repetidos.
Não haja receio em inventá-las, em usar uma de duas letras quando não vier a jeito uma de quatro, em dizer com vinte o que se pode contar com dez, em abrir cardápios de outrora, em abrir o pano que encobre os vícios e os temores, as trevas em que se encobrem os ódios entre as palavras desavindas e as histórias que abrem chagas nos seus actores. As palavras mais dissimuladas que se dispam, os nomes que se sejam chamados quando forem invocados para tanto, e se eles estão disponíveis na arca inesgotável que está enterrada em cada ilha, quintal, floreira de todas as esquinas, não se apostem no casino da incerteza. Terão elas assim o valor que lhes é atribuído por de tudo serem razão, e a sua dádiva maior é a de que, mais do que fazer uma promessa de amor, poder-nos-á ser dedicada uma pois há quem nos oiça. E todos os homens têm uma palavra para os sentimentos, para os laços de família, para designar as estrelas que são de todos. Como poderá não ser o gelo, ou um manjerico.
Esbanjemo-las sem que caiamos no exagero do elogio, sem que elas sejam sempre arma de arremesso, sem lhes passarmos o atestado da menoridade por considerá-las sempre eloquentes ou vulgares, sem serem inquestionáveis, sem que sejam sempre as nossas. São património universal, de todas as formas que são ditas, tão novas quanto formos investigar e tão antigas quanto as primeiras que cada um de nós pronunciou. Cada uma com a mesma importância do seu legado, da sua preservação, provando que quando se destrói uma etnia, um povo ou uma nação podemos então estar a perder um pouco das jóias que são o melhor adorno do que todos fomos impelidos a construir. Um adereço sem o qual o aborígene e o cosmonauta não fazem parte da mesma realidade, a da cidade em festa por altura do primeiro dia de aulas, a de um romance acrescentado a uma biblioteca pública, a das memórias de um monge ou a da abertura de uns jogos olímpicos.
As palavras também ferem, infligem a derrota perante a sua disponibilidade, quando delas fazemos eco para que não tenham sentido e as pisamos sob o tacão da superioridade sobre aqueles que delas não logram poder fazer arte dos seus interesses. E são, por ironia, os mais pobres no exercício da representação da alma humana que tiram os dividendos como proprietários dos palcos em que se encena. E se ferem é porque corrompem. Esbanjemo-las: exortação perante a derradeira fronteira em que se define o valor da felicidade, medido pelo fito com que nos interrogamos acerca do que vale a paz e a guerra, a fraternidade e a opulência, o sucesso e o respeito. Se o artifício efémero é o da guerra, da opulência e do sucesso, a interrogação será talvez a concretização da falência do diálogo, e as palavras não terão sequer epitáfio. Os que se perguntam se ainda vale a pena, esses que puxem pela harpa, e os acordes, se não se ouvirem na terra, pode bem ser que sirvam de banda sonora à vontade maior com que sobreviva uma geração de líricos. A provar que há mais vida para além do que fica por dizer.
Entretanto, que se preencham os tempos livres com a boa conversa, com alguém por perto e com quem possamos discordar, e partilhar o que nos faça sentir acompanhados por outros que ainda estão presentes através do que as palavras permitiram. O prazer das palavras, ouro imenso que não é tributado, parque de diversão que não se paga, ferramenta que custa o que vale para provar a supremacia do raciocínio e a possibilidade da inventiva imediata, universo inesgotável que se oferece como quem dá um rebuçado a provar, ainda é propriedade de todos que tenham a graça da faculdade de o ter herdado e conservado.
Enquanto o silêncio se quer impor, as palavras estão à espreita para a oportunidade de provar que elas são de ouro.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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