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"É fundamental resgatar a ideia de utopia e procurar concretizá-la"

«Malditas Defesas Morais»

Cinara Nahra é filósofa e professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no Brasil, onde é igualmente responsável pela direcção do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. As suas áreas de actuação centram-se em torno da filosofia, ética e políticas públicas. Autora do livro "Malditas Defesas Morais", onde estabelece uma defesa moral de temas tão controversos como a prostituição, a homossexualidade, o sadomasoquismo ou o aborto, Nahra foi entrevistada pela PÁGINA na sua passagem por Portugal, na qual houve oportunidade para abordar estes e outros temas.

É autora de um livro intitulado "Malditas Defesas Morais". Porquê este título e o que é abordado nele?

O livro é uma discussão do ponto de vista moral em torno de quatro temas: a prostituição, a homossexualidade, o sadomasoquismo e o aborto. A conclusão a que eu chego é de que não existe nada de moralmente errado com estes quatro comportamentos, desde que eles sejam consentidos. Daí o título "Malditas Defesas Morais", porque ele constitui, de certa forma, uma defesa moral contra o ataque que estas práticas sofrem, nomeadamente a partir de uma visão moralista judaico-cristã.

Considera que o livro é uma mera análise filosófica ou ele reflecte, de alguma forma, o seu próprio pensamento em relação a estas assuntos?

Sim, na medida em que não se limita a ser uma defesa exclusivamente sociológica ou política, é uma defesa que eu pretendo seja mais profunda, no plano moral. Neste sentido, não consigo distinguir a abordagem académica da minha perspectiva pessoal. São defesas do ponto de vista académico mas nas quais eu acredito, que estão relacionadas com a minha prática política. Desde sempre militei em movimentos políticos de esquerda e fui uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores, que sempre defendeu o direito ao aborto e à homossexualidade.

De que forma considera que tem evoluído a construção de valores como a liberdade e a felicidade nas sociedades ocidentais?

É uma construção um tanto ou quanto problemática. E neste início de milénio esses valores estão de certa forma a perder-se. Apesar disso, no que se refere à liberdade, por exemplo, no caso específico da América Latina ? nomeadamente do Brasil, do Chile e da Argentina ? verifica-se um claro avanço em termos de liberdade política, que se reflecte a nível da própria liberdade individual.
No entanto, existe ainda uma grande carga de preconceito e de moralismo, aliados a um avanço muito significativo daquilo que se poderá designar por neo-conservadorismo, personificado, entre outros, na administração política norte-americana ? contrária ao aborto, repressora da sexualidade e defensora da abstinência sexual ? e na igreja católica, que já com João Paulo II tinha uma posição conservadora no seio da igreja, mas cuja situação piorou com a nomeação do novo Papa Bento XVI.

Concorda que há uma décadas atrás a busca da felicidade assentava mais na procura do bem comum do que actualmente?

Sim, e nesse sentido não há dúvida que hoje em dia vivemos numa sociedade extremamente individualista. Porém, há que diferenciar entre o individualismo e o individual. Uma sociedade tendencialmente individual, onde as pessoas afirmem a sua individualidade e a sua autonomia, é desejável. O problema é que hoje em dia vivemos numa sociedade essencialmente individualista ? e na minha opinião o individualismo tende habitualmente para o egoísmo ? onde as pessoas se preocupam pouco com os outros e sobretudo consigo próprias.

Qual é a sua posição face à eutanásia? É ou não uma questão de liberdade pessoal?

Com certeza, mas há que fazer algumas distinções de carácter conceptual já que existem três categorizações da eutanásia: a voluntária, a involuntária e a não voluntária.
Eu sou a favor da primeira, na medida em que cada indivíduo deve poder decidir se quer ou não abreviar a sua vida. O ideal seria que as pessoas se pudessem pronunciar antecipadamente sobre esta questão tal como acontece com a doação de órgãos após a morte. É uma decisão pessoal.
A eutanásia involuntária não passa, na minha opinião, de um assassinato e não vejo de que forma possa haver concordância sobre esta prática. É o caso em que uma pessoa decide que gostaria de continuar a viver, mesmo numa situação de extremo sofrimento, e a família, o Estado ou os médicos decidem em contrário.
Finalmente existe a eutanásia não voluntária, que é o caso mais complicado, onde a pessoa não deixou claro o que pretendia e na qual, perante a impossibilidade de se pronunciar, alguém tem de fazer essa escolha por ela, normalmente a família.
Por esta e outras razões defendo uma regulamentação da eutanásia, através da qual a pessoa pudesse declarar a sua vontade em vida, tal como se faz com a doação de órgãos, porque evitaria este tipo de dilema.

A Cinara está a participar num projecto que se designa "Turismo Sexual: prostituição adulta consentida ou exploração feminina infanto-juvenil?". Em que âmbito se desenvolve esta iniciativa?

Este projecto tem vindo a ser desenvolvido no Brasil, através de mim e do professor Alípio de Sousa Filho, e em Portugal, com a participação, entre outros, do professor Fernando Bessa, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A nossa intenção é avaliar e estudar os trânsitos que ocorrem entre as mulheres brasileiras que se dedicam à prática da prostituição em Portugal e nas regiões fronteiriças, e, por outro lado, os homens que se deslocam ao Brasil, nomeadamente à região de Natal, para a prática de sexo pago com mulheres desta zona.
A minha opinião, a priori, é que se trata de um trânsito através do qual estas mulheres vêm de livre e espontânea vontade ? não considerando, por isso, que haja qualquer problema de ordem moral com essa atitude. No entanto, a constatar-se que exista alguma espécie de constrangimento que as obrigue nesse sentido, tal como acontece habitualmente com as redes de tráfico de mulheres, aí haveria um problema moral sério.

Já chegaram a algumas conclusões?

São ainda conclusões muito parciais, pelo que não gostaria de me pronunciar. Mas, em princípio, estas mulheres vêm do Brasil de livre e espontânea vontade, sem qualquer tipo de constrangimento.

Até que ponto há, de facto, liberdade pessoal nessa escolha, atendendo a que a motivação económica é, em si, um constrangimento?

Essa é a discussão clássica em torno deste tema, isto é, se as mulheres se prostituem por opção ou por algum tipo de constrangimento de ordem económica. Talvez haja, de facto, uma espécie de constrangimento, mas no Brasil um trabalhador assalariado não chega por vezes a ganhar o equivalente ao salário mínimo nacional (cerca de cem euros), quantia que estas mulheres conseguem fazer em três ou quatro "programas". Ou seja, torna-se muito mais vantajoso do ponto de vista financeiro praticar a prostituição do que passar oito horas diárias a trabalhar em condições que por vezes são muito más. Não sei até que ponto se poderá chamar a isto um constrangimento?
A visão judaico-cristã defende que as prostitutas devem ser perdoadas e salvas porque se vêm obrigadas a isso, neste caso para fugirem de uma situação económica degradante. Na minha opinião, esta visão é muito limitada e muito equivocada. Ao defender a salvação das prostitutas, então deveríamos defender a salvação de todos os trabalhadores que têm más condições de vida e de trabalho?

Defende, então, que a prostituição é uma escolha pessoal e que deve ser encarada em igualdade com qualquer outra profissão?

Exactamente. Defendo que a prostituição deveria ser classificada como uma profissão, na condição de as pessoas a exercerem de livre vontade, onde o Estado garantiria direitos básicos como a reforma e condições mínimas de trabalho, nomeadamente através da criação de zonas livres para a prática da prostituição, onde existisse um controlo sanitário e uma regulamentação da actividade de forma a evitar a exploração e a violência exercida sobre estas mulheres. Acho que este é assunto que deveria ser discutido seriamente no Brasil.

Será que se pode falar de uma defesa ética, mais do que uma defesa moral, da prostituição?

O filósofo Ernst Tugendhat refere num dos seus livros que a distinção entre ética e moral é um pouco como querer distinguir entre cervos e veados, ou seja, não há qualquer diferença. Apesar de existir uma tradição de distinção entre os dois conceitos, inclusivamente na tradição marxista, na qual a ética seria superior à moral, não vejo a aplicabilidade dessa distinção.
Na minha opinião temos de desconstruir as palavras. A distinção será então entre a ética ? aquilo que é certo ou errado ?, e o moralismo, este último entendido como a reprodução de preconceitos morais que não se sustentam do ponto de vista racional, nomeadamente ao defender que a homossexualidade está errada, que o sexo antes do casamento não é correcto, etc.
Este esclarecimento permitiria que se fizesse mais uma vez uso da palavra moralidade, que foi de tal maneira apropriada pelos conservadores que apenas quem se mostra contrário à prostituição seja visto como verdadeiro defensor da moralidade, quando na realidade não o é. Eu, por exemplo, defendo a prostituição e considero-me muito mais moral do que os conservadores. Porque razão a prostituição é imoral? Apenas porque existe o uso de sexo por prazer? Qual é o problema disso? Principalmente quando pensamos que permanecem várias coisas no mundo que são imorais, como a opressão, a violência ou a guerra.

Qual deve ser a posição do cientista social face à sociedade: a de neutralidade ou de envolvimento crítico?

Eu acho que são dois aspectos distintos. Na fase inicial da pesquisa, quando se recolhem os dados, temos necessariamente de ser neutros, porque se optarmos por uma visão preconceituosa a recolha dos dados irá ser falseada. No caso deste trabalho de campo sobre a prostituição, por exemplo, não podemos ir com uma perspectiva prévia sobre se ela está certa ou errada. O mesmo se aplica ao segundo momento, o da análise de dados.
Num terceiro momento, porém, o momento da crítica, provavelmente o mais importante mas ao qual muitos intelectuais não atribuem a devida importância, tem de haver um comprometimento por parte do cientista social no sentido de dar um significado ao resultado da sua pesquisa, nomeadamente no que ela pode significar em termos de mudança política.
Na minha opinião, o intelectual tem, de alguma forma, de estar permanentemente envolvido com a ideia de utopia. Na minha opinião, é fundamental resgatar a ideia de utopia e procurar concretizá-la.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

Livro:
"Malditas Defesas Morais"; Cinara Nahra; edição da Cooperativa Cultural UFRN.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

Cinara Nahra
Filósofa e professora
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Cinara Nahra
Filósofa e professora
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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