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O desporto e o desafio do sentido
Se ainda podemos chamar ao desporto um aparelho ideológico do Estado, há uma ideia que emerge, sobre as mais: a centralização da instituição desportiva, pelo aparelho do Estado. E, porque vivemos em plena sociedade do rendimento (onde só vale quem rende), o facto de todos os Estados do planeta desenvolverem tendencialmente a mesma política desportiva do Estado, em resposta aos imperativos da competição desportiva internacional, fomentada pelo neoliberalismo dominante. Simultaneamente, os jogos tradicionais populares são murados em espaços de desinteresse, em favor dos desportos com federações internacionais. Qualquer espectador atento e receptivo concluirá assim, facilmente, que o desporto hodierno, fervilhante de símbolos, constitui uma forma de reprodução de um determinado tipo de sociedade. A mercantilização, a burocratização, o uso e o abuso da droga, a corrupção, etc. são provas evidentes que os conceitos fundadores da prática desportiva foram nitidamente postos de lado. É o desporto uma instância autónoma? Só o é, relativamente. Por isso, a competição desportiva se confunde com tanta coisa que a enodoa e corrompe.
Como num livro, velho de trinta e tantos anos, já o assinalava Michel Bouet, o desporto é uma actividade saudável, que satisfaz as necessidades motoras do praticante; promove a realização pessoal, através da afirmação do eu; reveste, muitas vezes, o aspecto de compensação, face ao stress e ao labor monocórdico da vida profissional. Por outro lado, a necessidade de sentir-se em grupo; o interesse pela competição-diálogo; o desejo de vencer e de ser campeão, não tanto porque se ganhou, mas porque se é um "ganhador"; a combatividade que transmite a vontade de vencer... desportivamente, ou seja, com dignidade; o amor pela natureza, bem visível nos desportos ao ar livre; o gosto pelo risco e uma irresistível atracção pela aventura ? constituem características do homem (e da mulher) que podemos designar como desportista, ou então os pontos centrais da motivação do desporto. Trata-se, de facto, o desporto de uma conduta motora (ou acção), simultaneamente lúdico-agonística, institucionalizada e universal, onde se verifica uma incessante procura de superação sobre os outros e sobre nós próprios, na forma de competição-diálogo. Os benefícios de ordem física, biológica e antropossociológica, que do desporto podem resultar, são incontáveis. Atravessamos o século do desporto. Não é de espantar, portanto, que as suas virtualidades tenham chegado, com assombrosa rapidez, ao conhecimento dos nossos contemporâneos. Mas... qual o sentido do desporto? Tenho para mim, depois das modestas investigações que tenho realizado, ao nível da motricidade humana, que o sentido do desporto é a transcendência, é a liberdade que procura o absoluto. Não há nele tão-só a continuidade temporal do "mundo da vida", mas também a descontinuidade dos instantes criativos. Praticar o Desporto tem um sentido: procurar a transcendência, através da motricidade humana. Por isso, as competições e os treinos exalam significação, aquela que resulta de um ser humano que deseja superar e superar-se, em equipa (em grupo, em comunidade) e jogando com e não contra. Encontrar-se-á o Desporto compreendido nas categorias de futuro, de utopia, de esperança e de possível? O desportista vive, de facto, de modo próprio: ele recusa qualquer atitude resignatária, qualquer consentimento conformista, dado que se encontra em permanente movimento intencional, em direcção ao mais-ser. E, por consequência, visando a plenitude, tanto do ponto de vista ético, estético e gnosiológico, como ao nível da condição física, da saúde e das qualidades motoras. Costuma afirmar-se, por vezes com alguma ligeireza, que o desporto dá saúde. Dá, de facto, quando não são evidentes, no mesmo todo social, os mecanismos económicos da exclusão e da desigualdade. O corpo não pode percepcionar-se como simples máquina. É o corpo-sujeito a que me refiro, que é também um sistema coerente de sentimentos vividos. A saúde tem a ver com o todo, donde emergem, igualmente, o social e o político. O pensamento europeu das Luzes fez sua a "consciência enquanto tal" kantiana, como sujeito transcendental da verdade objectiva. Foi à luz do racionalismo que o desporto nasceu. Ora, no racionalismo, as ciências naturais não problematizam a intersubjectividade em que se desenvolve a investigação e a institucionalização dos saberes.
O treino clássico, ou analítico, não tinha em conta a dualidade compreender-explicar, ou melhor, sabia o que se explica, ignorava o que se compreende. A linguagem do desporto é específica e tem uma semântica autónoma. A ideia de que um gesto desportivo só consegue uma compreensão interessante, quando o gesto desportivo é subsumível a leis gerais, está ultrapassado. No gesto desportivo, está o Homem que nem sempre cabe, na universalidade das leis do treino. O desporto rompe o hermetismo da causalidade científica, porque a interpretação, nele, não é apenas um conhecimento conceptual, mas experimental. No desporto, não pode falar-se de uma objectividade que não inclua a subjectividade do praticante. No trânsito de um desporto, encerrado nos quadros do sociologismo, do pedagogismo e do biologismo, para uma fundamentação existencial-ontológica, onde o sentido é um elemento fáctico, está a revolução a iniciar no treino desportivo e na pedagogia do desporto. Partindo da expressão conhecidíssima de Gadamer "o ser que pode ser compreendido é linguagem", a qual retoma a ideia de Heidegger, conhecidíssima também, da "linguagem como casa do ser", a motricidade humana não pode fundar-se a partir do cogito, como o fazem as ciências. No desporto, há, acima do mais, sentido. E assim não existe conhecimento crítico completamente dissociado do conhecimento pré-predicativo. O dogmatismo metodológico não é o todo da prática desportiva. O todo é o sentido, porque do sentido ressalta o homem todo.
E é preciso que não nos cansemos de denunciar que o sentido do desporto, para muitos, é a altíssima competição e o lucro. E um espectáculo manipulador...

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 172
Ano 16, Novembro 2007

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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