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A evidência
Tinham começado as aulas há pouco. No jardim-de-infância, as jovens educadoras (algumas muito jovens mesmo) recebiam as primeiras estagiárias. Era o primeiro contacto destas com a realidade, a formação no terreno, como então dizíamos.
Uma dessas minhas alunas procurou-me preocupada pois não sabia muito bem como agir.
Professora, contava ela, uma das meninas que está na minha sala está coberta de?piolhos, pode iniciar-se um surto de pedicolose?Já lhe lavei a cabeça, dei o champô para ela levar à mãe, mas ela continuou a chegar cheia de?daquilo, com muitas lêndeas, e eu já não sei que fazer. É que chamei a mãe. Ela lá apareceu; até que nem ia mal arranjada embora à moda do campo. Ia assim, sei lá, assim de socos, avental e o cabelo apanhado. E até dava a ideia de estar limpa mas a cabeça estava cheia de lêndeas, eram tantas que parecia que tinha a cabeça com farinha. Depois eu falei-lhe da filha, de como ela estava mal com aquele problema, que era perigoso para a saúde dela e também das outras crianças e até evitava olhar-lhe para a cabeça enquanto falava, porque era como se estivesse mesmo a falar dela também.
Expliquei-lhe que tudo se podia tratar mesmo com o champô que eu mandara pela miúda ? e que pelos vistos ela não usara ? e de como devia lavar a cabeça da filha com alguma regularidade e, se possível, (aqui senti-me corar) também a das outras pessoas da família.
Foi quando ela me interrompeu, nada aborrecida mas apenas preocupada com a minha preocupação:
_ Não vale a pena, menina, deixe lá, não se esteja a afligir.., disse ela
_ Não vale a pena porquê? Perguntei admirada.
_ Porque nem a ela aquilo vai passar nem ela vai pegar às outras crianças?
_ Porque diz isso? Insisti com ela.
_ Porque isto é a modos que uma doença que temos. É, como é que se diz? Hereditário?
_ Hereditário?!
_ Sim, ela tem, eu sempre tive, a minha mãe sempre teve e a minha avó também tinha. Isto é mas é uma doença de família. Vê-se logo que é hereditário?
Não sei o que fazer, professora?
Quando a minha aluna terminou a sua história fiquei um pouco sem saber o que dizer. A argumentação estava correcta: tínhamos as provas. As situações que se repetiam, as diferentes gerações com um mesmo problema, logo a conclusão, para aquela mãe, só podia ser aquela. A evidência impunha-se por si mesma. Aquela era a argumentação da evidência.
A mesma argumentação que se usa para reafirmar que os da família dos Melros são sempre assim: já fui professora do pai, dos irmãos mais velhos e agora deste. Nunca conseguiram aprender nada. Logo, ele também não conseguirá?
Alguns pais dizem que se nasce com vocação para uma coisa: ou jogador de futebol, ou serralheiro ou médico. É tudo uma questão de vocação, basta ver o que faziam os pais e os avós?
Os alunos de famílias pobres são sempre mais fracos a matemática?e talvez isto seja também uma questão de vocação ou de hereditariedade. Daí que a meritocracia possa beneficiar menos os ricos que os pobres. Mostra-se à evidência que estes serão duplamente beneficiados: o mérito de terem sucedido e o mérito de se poderem comparar com os ricos? a minoria que conseguir, claro.
Como refere António Nóvoa, o que é evidente mente, evidentemente.

  
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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