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A rapariga que me salvou a vida, pede hoje respeito pela sua forma de vida

Dedicado à rapariga do 11 de Setembro de 1973

Tinha visitado o Chile, pela curiosidade de observar o Governo do primeiro Socialista eleito em eleições livres. A pesar que o Dr. Salvador Allende nem ter tido tempo para Governar, por ter sido morto devido aos interesses de um Governo estrangeiro que sublevou o exército, mandou para a prisão todos os que podia, matando chilenos de forma indiscriminada. Apesar do meu estatuto de visitante, na noite das Festas Nacionais, 18 de Setembro, fui levado para um campo de concentração, do qual fui salvo por Jack Goody, meu professor, director e colega da Universidade de Cambridge. Este amigo tinha estado 4 anos em Auswitchs? sabia bem o que se fazia nesses sítios. Fui denunciado como Socialista, o maior pecado do mundo, pela minha própria família, expropriada das suas terras e industrias, mandadas distribuir entre os que as trabalhavam. Melanie Klein descreve este tipo de situações bem melhor ao estudar um sobrinho de Freud em 1937, no seu texto "Inveja e gratidão" .
Faço aqui um aparte apenas para indicar aos leitores, pais de crianças hipoteticamente expostas ao sofrimento, como é o caso da rapariga da qual vou falar. Aparte, porque o elo central é esta rapariga. Não tolerei que ninguém entrasse no seu quarto, aos 35 soldados que invadiram a nossa casa e queimaram a nossa biblioteca. Falei com autoridade de patrão, que até os soldados me fizeram continência, enquanto eu dava as ordens de como devia ser levado para a prisão. Ninguém tocou na rapariga nem aos livros dos Séculos XV, XVI e XVII, que eu pretendia salvar. E salvei durante os 37 anos de exílio a que fui condenado. A rapariga ? erro de pai ? viu-me regressar cansado, macilento e em pranto. Desde esse dia, ela pensou que eu estava morto, e era a minha alma falava com ela. Não se cansou de repetir que eu era um morto, nos seus cinco anos de idade, a idade da impressão no inconsciente como dizem Freud em 1906 e Wilfred Bion em 1963. O exílio, foi outro dos motivos de distância entre os dois. A depressão adquirida pelo imenso castigo, fez de mim um bom adulto para ela, mas rejeitado porque lhe lembrava a vida perdida, a sua família, e a imensidão de amigos, amores ternos e o desaparecimento do progenitor que, sente ela, não a soube cuidar nem tratar com histórias e contos, danças e imaginários, como relato no meu livro O imaginário das crianças. de forma disfarçada para o leitor não saber da vida privada do escritor.
Um dia, encontrou o homem da sua vida, teve com ele crianças e de mim, seu pai, quer saber o estritamente necessário. Procura, como mulher que é, alguma distância dos seus antigos adultos, facto racional e emotivo, que opera entre gerações. Estes adultos que a adoram e cuidaram dela ao longo de vário anos de vida
É isto que lembramos todo os meses de Setembro: Sua Excelência o Presidente Allende, o ataque às Torres Gémeas de New York, a morte de Luciano Pavarotti e estas pequenas, trágicas históricas dos filhos que crescem, que salvam os pais mas que procuram autonomia entre a sua casa doméstica e o lar dos seus antigos adultos. Sem ser católico, não posso deixar de exclamar: Ave Maria, e agora? Resta as solidão das solidões? O temor de falar? O desejo de receber um telefonema? Ou, mais importante, o respeito entre adultos?
Estes pequenos grandes dramas que passamos ao deixar a nossa vida abandonada entre o crescimento dos mais novos e o envelhecimento em terra estranha dos adultos. É preciso habituarmo-nos, suponho? e aceitar a realidade do tempo e as suas mudanças.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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