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O iberismo telúrico de TORGA

O meu iberismo é um sonho platónico de harmonia peninsular
de nações. Todas irmãs e todas independentes.
Diário XV ? 13/9/88

Nas muitas e merecidas homenagens que já tiveram lugar em várias zonas do país, para comemorar o centenário do nascimento (12 de Agosto) de Miguel Torga, não demos por nenhuma voz (expressivo augúrio?) que, alegando o apego do Poeta à terra ibérica, o evocasse para defender a integração de Portugal na Espanha, como terapêutica que alguns "managers" e "vencidos da vida" recomendam contra as cíclicas crises económicas que, segundo eles, resultam da nossa "pequenez".
Seria uma errónea alegação. É que, iberista até ao cerne, Torga, mesmo se visse, hoje, desolado, como numerosos portugueses, desertando de uma pátria imersa em mais uma profunda depressão económico-cultural, se estão a transferir, e uns tantos com armas (o capital) e bagagem (a família), para Espanha, e como os espanhóis estão a comprar ao desbarato as terras incultas e abandonadas, de Norte a Sul de Portugal, para nelas implantarem indústrias e fazendas agropecuárias, não admitiria nenhuma espécie de "rendição" ou "entrega" ao "inimigo histórico" de outras eras.
Torga distinguia muito bem o que significava a Castela hegemónica, a Espanha aglutinadora, a Ibéria matricial, a filipização e o franquismo, e o que da Mãe primigénia se transmitira em herança genética para as gerações vindouras, por último configuradas, já menos por laços de sangue do que por afinidades, em comunidades autónomas ou independentes, como Portugal.
E tão ciosas elas da sua sobranceria e tão complacente o luso-ibérico Torga mesmo perante o sentimento possessivo dos irmãos genésicos separados pelos avatares da história, que, na sua viagem a Olivença, em 1954, apenas reconheceu que "também as terras murcham longe da pátria e também um burgo pode ter saudades e mirrar-se de melancolia", sabendo que Olivença, conquistada aos mouros por D. Afonso Henriques, fora anexada por Espanha, em 1801, aquando das invasões napoleónicas, e assim continuou apesar dos convénios internacionais que prescreveram a "devolução". E com a mesma condescendência ou resignação passou pelo arquipélago das Canárias, pouco tempo depois, onde só registou que "os portugueses de quinhentos deixavam padrões nos lugares que descobriam", "esquecendo" que durante século e meio Portugal discutiu com Castela a posse do arquipélago, alegadamente visitado, antes de 1336, no reinado de D. Afonso VI, pela armada portuguesa.
Mas embora complacente ou resignado, porque sentindo, quanto às pátrias, que "a regra, agora, é pensar em função de continentes e não de países e em vez de Portugal talvez fosse melhor escrever Europa", visto que "o espaço vital diminui, e já nem como cidadão do mundo o homem respira com desafogo", não abdicava de afirmar, imune às visões paracléticas do sapateiro Bandarra e do padre António Vieira (referindo apenas os "profetas" mais antigos), que "há um meio específico onde cada indivíduo é menos infeliz. E o meu é este, de que conheço as agressões possíveis, e de que me sei defender instintivamente." (O que) "mais não é do que a expressão profunda da minha experiência histórica, social, telúrica, religiosa ou outra, vivida aqui."
Este pensamento acompanhou-o até aos últimos dias da sua vida, em 1995. Já não ouviu o capitalista José Manuel de Mello e o jornalista José António Saraiva (repetindo o pessimismo oitocentista de Antero de Quental e Oliveira Martins) interrogarem-se, em 2004, "sobre se valerá a pena o país continuar a existir ou se não será mais sensato integrarmo-nos na Espanha, porque os espanhóis nos governariam melhor." Nem ouviu José Saramago - que escreveu, em 1980, porventura o mais telúrico romance português da sua obra, "Levantado do Chão" - declarar, em 2007, numa entrevista ao "Diário de Notícias", sobre o futuro de Portugal na Península Ibérica: "Não vale a pena armar-me em profeta, mas acho que acabaremos por integrar-nos. Já temos a Andaluzia, a Catalunha, o País Basco, a Galiza, Castilla la Mancha, e tínhamos Portugal. (...) Não seríamos governados por espanhóis, haveria representantes de ambos os países, que teriam representação num parlamento único com todas as forças políticas da Ibéria, e tal como em Espanha, onde cada autonomia tem o seu parlamento próprio, nós também o teríamos."
Dando um sinal contrário, nas últimas páginas do seu "Diário" (1993) , Torga registava, depois de ter atravessado a fronteira já sem quaisquer empecilhos: "Mas nem por isso andei por Espanha dentro de coração solto. Confrontado com a realidade do poder crescente que por toda a parte nela verifiquei, a minha velha perspicácia de ibérico livre veio à tona agravada. A arrogância e o desprezo, que lia na cara de cada interlocutor, causaram-me ainda mais engulhos do que no passado. A tese de Franco na escola militar foi a ocupação desta faixa ocidental em poucas horas. E a da generalidade dos demais espanhóis, mesmo civis, é indisfarçadamente a mesma."
O "aviso" já o tinha feito muito antes. Diante duma Revolução nacional que já era almejada por Antero, mas na qual Torga não via a esperança da regeneração política do país, confessava: "Apetece fugir, deixar de ver esta pátria que mais ninguém sabe reconhecer, gramatical, cívica e humanamente, e onde o capricho de um galoado qualquer, a má disposição da sua amante ou a qualidade da aguardente que bebe mudam o curso de uma revolução. Mas abandoná-la de que maneira? (...) Mobilado de valores morais e sentimentais, telúricos, intelectuais e outros, prendem-me ao chão nativo amarras indestrutíveis. Para poder partir teria de meter no bornal o Marão, o Douro, o Mondego, a luz de Coimbra, a biblioteca e as vogais da língua. Sou um prisioneiro irremediável numa penitenciária de valores tão entranhados na minha fisiologia que, longe deles, seria um cadáver a respirar." Amenizava-o pensando que "é preciso ser contra isto, para ser por isto"- como o recordou Manuel Alegre, na comemoração em Coimbra.
Por tudo isso, muitos o reconhecem como o escritor mais "português" do século XX e um dos maiores lusomundialistas de todos os tempos.


  
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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